Era ainda madrugada quando o velho Samuel atravessou os caminhos de tábua erguidos sobre a maré, deixando seu pequeno e torto barraco emdireção a mais um dia de batalha. Nas mãos ele levava duas sacolas de plástico, uma com algumas mercadorias novas para vender e na outra o almoço dentro de uma pequena marmita térmica embrulhada em pano de prato branco. Samuel quase não sentia o frio do sereno em sua face cheia de sulcos e queimada pelo sol, tornara-se em certa medida insensível a mudanças de temperatura quando estas se verificavam no interior de sua rotina. Mecanicamente, seguindo essa mesma rotina ele atravessou mais uns duzentos metros sobre tábuas que balançavam aos seus aos seus pés até atingir a parte da invasão onde já tinham aterrado o mangue, e o lixo amontoava-se na margem da península exalando um mau cheiro imenso, que Samuel também não percebia. Apenas ocupava o seu pensamento a necessidade de conseguir algum dinheiro, pois a comida em casa estava acabando e ele se via obrigado a resumir suas refeições a ovo frito e farinha. Tinha também conta do fiado na venda do João, que já lhe cobrava fazia meses, e logo não lhe venderia nem sua sagrada cachaça do batismo. Chegou ao ponto de ônibus e enquanto esperava o coletivo entrou na venda do João, que ficava proximo ao ponto e pediu, como era de costume, uma dose – A do batismo, por favor seu João – O homem de meia-idade, com a barriga imensa escapando pela camisa aberta entortou a boca e despejou o liquido branco no copo – Muito obrigado – Samuel agradeceu estalando a língua, e abrindo um largo sorriso despejou parte do conteúdo no chão bebendo o restante – Quando você vem pagar o que deve Samuel? - Questionou João de costas para o balcão – Ainda essa semana, seu João, não se preocupe – É bom mesmo, ou não vai achar mais fiado em minha venda – de cabeça baixa Samuel recebeu o desacato e foi para o ponto unindo-se aos outros tantos que como ele esperavam o transporte, e que como sempre também veio lotado. Samuel correu até a porta dianteira deixou as sacolas, deu a volta e apertou-se para dentro do ônibus.Seus setenta anos pesavam mais nessa hora, mas a rotina e o hábito também anestesiavam parte desse desconforto.
Alguns quilômetros e muitos solavancos depois o ônibus chegou ao centro da cidade. As pessoas desceram como bois ruminando o assunto de suas vidas umas para as outras e Samuel pegou as suas sacolas e também desceu. As ruas estavam imensamente agitadas. Era época de eleições e os militantes dos diversos partidos podiam ser vistos em diversos pontos da cidade agitando suas bandeiras dediversas cores. Samuel nunca se interessara por politica em seus setenta anos de vida, homem rústico, de pouca educação sempre vivera de sub-empregos e com dificuldades criara o único filho, que tinha ido morar com os parentes ao completar 18 anos, Leonardo.Foi muito duro para Samuel criar um filho junto com a esposa vendendofrutas e trabalhando de carregador em feiras públicas, mas agora esses dias tinham acabado. O Leonardo morava com alguns parentes ricos e frequentava uma universidade, desde que morrera sua mãe e ele ia tocando a vida com sua cachaça, seu futebol e seus cigarros.
Chegando a praça onde montava seu ponto de venda de frutas Samuel dirigiu-se até o depósito onde os ambulantes como ele guardavam as suas mercadorias. Pegou o tabuleiro de madeira, o cavalete, o pequeno banco e em seguida transportou um a um os caixotes de maçãs e pêras armando-os sob o tabuleiro forrado de papel laminado. Porém do outro lado da praça uma manifestação de um grupo de estudantes universitários misturados amilitantes de um partido radical gritava em frente a um banco estatal que ia ser privatizado. Os manifestantes tinham interditado o acesso ao banco. A policia fortemente armada de escudos e cacetetes preparava-se para desobstruir a entrada do banco. Os universitários cantavam em êxtase palavras de ordem. A policia começou a marchar em sua direção, do outrolado da praça Samuel observou o tumulto e as pessoas que corriam de um lado ao outro. Temeroso de um assalto que lhe tirasse o ganha-pão ele começou a guardar sua mercadoria apressadamente.
Foi quando explodiu o conflito, a policia avançou sobre os manifestantes possuídos pelos seus ideais, com aforça não menos persuasiva de seus cacetetes. Aqueles munidos de pedras e paus tentaram defender-se como puderam, a principio tentando manter um solidário bloco coeso, depois correndo, batendo e apanhando desordenadamente e ao fim correndo sensatamente para salvar a pele, foi nessa última parte do combate que a onda humana precipitou-se sobre Samuel que começava a recolher suas frutas. Na fuga desesperada os manifestantes saiam apanhando tudo o que encontravam pelo caminho com o propósito específico de afastar o inimigo que avançava e capturava um a um os bravos guerreiros do ideal. Foi numa dessas fugas que um dos estudantes apanhou um paralelepípedo sob a chuva de balas de borracha e atirou sob os policiais, o projétil atravessou o ar mas não atingiu nenhum policial. Tentando esconder-se em um dos becos para esquivar-se das balas Samuel tornou-se o alvo para a pedrada do estudante, e caiu com a cabeça partida, com o sangue jorrando aos borbotões, seus últimos pensamentos foram desconexos e misturavam a dúvida sobre o que tinha atingido, a preocupação com o dinheiro para os cuidados médicos e o medo acarretado por tudo que já tinha ouvido sobre a morte e o julgamento de Deus. A revolta foi contida e muitos estudantes presos, alguns jornais traziam estampadas as fotos dos estudantes agredidos e outros jornais, chamados sensacionalistas notificavam o incomum fato do estudante que matara o velho pai que não via há muito tempo em meio ao tumulto e a fuga.