segunda-feira, maio 24, 2010

Jorge Maluco

Era mais um dia duro de trabalho e os rapazes estavam todos tão esgotados do batente que nem se ouvia as piadas ofensivas sobre esposas e irmãs. Os caminhões faziam fila em frente ao açougue e enquanto os carregadores traziam os fardos os açougueiros trabalhavam rápido com as facas. As postas de carne iam caindo no chão e eu as pegava, fazia uma ultima limpeza e pendurava nos ganchos do frigorífico. Estávamos todo o tempo inteiramente cobertos de sangue. Era uma situação tão comum que nem nos dávamos conta de diferença entre o sangue do gado abatido e nosso próprio suor. Os dois misturavam-se e secavam em nossos corpos e se repetia-se o processo mais umas duas ou três vezes antes de terminar o expediente. Uma vez o sujeito da serra de ossos acertou o próprio dedo com a lâmina e foi levado as pressas para urgência com um pedaço do indicador preso apenas por uma inútil membrana. O salário era também muito pequeno. Mal dava para a coisas mais básicas. Mas não havia nada de melhor no horizonte. E tinha a honra de ganhar o próprio dinheiro, mesmo sendo tão pouco. Na saída do batente os rapazes as vezes derrubavam umas cervas no Bar do Mário. O lugar cheirava a álcool e derrota. As duas coisas estavam sempre rondando as portas de madeira do lugar. Mario era um negro magro e bem alto, de olhos saltados e com o pescoço coberto de patuás, correntes e contas. Ao lado as garrafas com diversos de tipos de infusão ele guardava imagens de santos e orixás. Não era de falar muito. Quem não o conhecia fava com medo só de olhar em seus imensos amarelados olhos. Mas era um bom sujeito, eu acho.
Havia um mendigo que volta e meia sempre rondava o bar do Mario. As pessoas o chamavam de Jorge Maluco, mas ninguém sabia ao certo se esse era mesmo seu nome. Jorge não conversava com ninguém. Sabia falar corretamente, as vezes passava cantando, mas se alguém puxasse papo ele simplesmente ficava olhando para o chão e não dizia nada. Dirigia-se às pessoas apenas para pedir; às vezes pedia um copo de café, as vezes um trocado para o pão, as vezes uma calça velha e etc. Jorge era sobretudo um mendigo anti social. Mario, por outro lado, era um sujeito bem seco e pão duro. “Sou igual a Mandacaru”- Ele costumava dizer a quem lhe devia dinheiro “não dou encosto nem refresco para ninguém.” Todavia o Mario possuía um vínculo silencioso com o Jorge. Era o único mendigo que recebia alguma coisa naquele bar. Todos os dias, às 16:00 hrs precisamente Jorge maluco parava na porta do bar do Mario que prontamente saia com um saco de pão e uma garrafa de café e lhe entregava em silêncio. Jorge tampouco mexia os lábios para agradecer. Como lhe era comum, pegava o donativo e ia-se embora em passo curto e rápido balbuciando coisas que se alguém entendia era apenas ele mesmo.
Um dia, durante a cerveja pós-expediente comentei com o Groto o açougueiro, um branco de Irecê; grande sujeito, bom de trabalho e de copo.
-Por quê o Mário todo dia, no mesmo horário, dá ao Jorge maluco o mesmo saco de pão?
-Eu soube de uma história, mas não sei se é verdadeira – Respondeu o Groto e continuou- Mas o Mário não gosta de ouvir as pessoas falando disso. Fica brabo como cavalo xucro.
Groto entornou mais um copo, olhou para os lados para se certificar de que o Mário não estava por perto e continuou:
-Há algumas décadas atrás o Mário também foi açougueiro. Dizem que era dos melhores. Tão bom que o dono do matadouro o promoveu a gerente. Mas sabe como é, depois de um tempo trabalhando nessa coisa a gente vai ficando um bocado insensível e duro- Parou, deu outra golada e uma trago no cigarro barato. – Bom, como gerente o Mário tratava todo mundo como tratava a carne que destrinchava. Era direto, cortante e sem compaixão. O Jorge nessa época era um auxiliar de carne como você Juan Leon.
-Mesmo?- Interrompi assustado.
-Exatamente, e também era dos bons. Mas o filho único que ele tinha caiu doente, uma doença séria sabe? E naquela época se ganhava ainda menos que hoje em dia. O Jorge faltou ao trabalho alguns dias, correndo para cima e para baixo com a patroa e o filho a procura de um medico, mas o menino continuava cada vez pior. Quando apareceu no açougue para dar satisfação do período ausente o Mário foi cruel. Mandou o pobre infeliz voltar imediatamente para o batente.
- Caralho. Que escroto!
-Pois é. Mas o Jorge se recusou. Aí o Mario disse que se ele não voltasse ao batente não recebia nada. Sem dinheiro, como ele ia comprar comida e remédios para o menino doente? O Jorge desde aquela época era sozinho no mundo. A mulher dele também. Nem parentes, nem amigos...sozinhos. Sem escolha Jorge voltou ao trabalho. No meio do expediente recebeu a noticia de que o filho tinha morrido chamando seu nome. Largou a faca e o avental e saiu alucinado correndo. Ao chegar em casa viu um tumulto em frente ao barraco em que morava. Sua mulher estava estendida ao lado da cama do garoto com os pulsos cortados.
-É, qualquer um ficaria maluco com uma coisa dessas.
-Pois então. Desde esse dia Jorge não dirige uma palavra a ninguém, exceto para pedir uma coisa ou outra. Por remorso o Mario lhe dá essa esmola todo dia. Também passou a se interessar por essas coisas de santo, espiritismo e etc.
Quando terminou de contar a história percebi que o Groto balançou a cabeça e suspirou fundo. Uma coisa triste mesmo. Também era triste para os bois que a gente sangrava todo dia. Mario era duro, escroto também, mas estava apenas fazendo serviço dele. Depois de se estar a tanto tempo procurando um jeito de passar pela trincheira sem sangrar a gente desiste. De uma forma ou de outra alguma coisa vai se partir. As vezes de forma visivelmente cruel, como aconteceu ao Jorge, as vezes de forma silenciosa e lenta. Terminamos a cerveja e fomos embora. No dia seguinte haveria mais sangue em nossas mãos.

sexta-feira, maio 14, 2010

Batalha

Nunca foi fácil arranjar um bom bar para beber e papear em Salvador. Em todo lugar onde se vende cerveja nessa maldita cidade se toca musica de péssima qualidade e no último volume. É pior ainda no finais de semana. Não existem muitas opções de vida social por aqui para quem não aprecia essa coisa toda de estrebuchar e repetir refrões sem sentido tentando acentuar a impressão da virilidade que a repressão sexual CASTROU E ESMAGOU. Sacou o Reich na jogada né? É por aí mesmo. Bom, por tudo isso quase sempre acabo ficando mesmo em casa. Só a carência absoluta de um bom pedaço de fêmea justificaria minha incursão na vida social baiana. Nem mesmo a suposta cena “underground”, quase inexistente por aqui, vale a pena. De fato há apenas um lugar, um esquecido barzinho e pizzaria em um canto esquecido de brotas, gerenciado por um ex-soul man da velha guarda, onde eu costumo me juntar ao Batalha para tecer nosso planos de revide. Quando rola som ali é sempre muito baixo. Umas coisas que nos fazem reviver dias que nunca aconteceram. Billie Holiday, Cassiano, Armstrong, Tim, Zé ( O ramalho, o antigo) Roberto (Carlos, o Beem antigo) e por aí. Dia desses, depois de um largo período em que andei encasquetado dentro da minha concha nos encontramos Lá novamente.
-E aí Leon.
-E aí Batalha.
-Como vão as coisas?
-Pergunte ao Pó
-Porra, essa é velha, “Pulp”
-Isso aí, Dante e depois Fante.
-E no Mais.
-Um da Escola casou.
-Porra, também? É, todo homem precisa de um seguro para os dias difíceis.
-Mas para esse cara os dias difíceis já chegaram- eu disse.
-Como assim Man?
-O Sujeito saiu do emprego.
Batalha ficou assustado. Todos nós sabemos o que significa ficar desempregado no Brasil. Seus olhos saltaram.
-Caralho! Fudeu! Como ele ta se virando?
- A patroa dele arranjou emprego de tempo integral, mas isso não é o pior.
-Como assim Leon, você está estranho, cheio de rodeios, que porra aconteceu finalmente?
Era difícil para mim contar o lance todo assim na lata. Da Escola era um dos nossos. Um filho do subúrbio como nós que tinha colhões o bastante para não se render ao tráfico, a igreja, ao partido nem ao pagode. Ele TINHA sim colhões, mas os perdeu, de forma trágica.
-Bom, sabe aqueles animais que mudam de sexo quando as fêmeas desaparecem?- Falei, dei uma golada, uma tragada e continuei- Aconteceu algo parecido com o da Escola.
-Como assim Man???
Bom, primeiro ele ficou desempregado, como eu contei. Em seguida a mulher dele arranjou emprego, Também citei isso.
-È, mas e aí?
-No início o problema era só uma brochada uma vez ou outra. Normal, quem nunca brochou não aprendeu o valor um serviço bem feito. Depois o Da Escola começou a cuidar das coisas de casa enquanto a patroa trabalhava, tipo lavar prato, roupa, fazer comida e etc. Parou de tomar uma com a gente, você deve ter percebido.
-É, percebi sim.
-Foi nesse ponto que as coisas começaram a ficar estranhas, tipo aquele seriado.
-Arquivo X- Batalha completou.
-Isso aí. O Da Escola começou manifestar insensibilidade na ferramenta. Não sentia nadinha ali. A coisa começou a ficar roxa e fedorenta até que simplesmente despencou no chão.
-CARALHO!
-Isso, caiu podre e sem vida. E o pior, no buraco que ficou começou a se formar uma xana.
-Porra! Peeeeera aí Leon, você ta de sacanagem! Impossível.
-Um momento, não terminou. A vagina da mulher dele também começou a mudar. O clitóris cresceu e se transformou em um pênis. Os peitos atrofiaram. Agora ela é que segura o controle da televisão. Não preciso dizer que ele não vem mais beber com a gente. Tem novela sábado à noite e domingo é o dia que ele tira para ficar com ela.
Terminei meu relato e pedi outra rodada. O Batalha estava desconsolado. Sabíamos que em algum momento uma coisa daquelas iria acabar acontecendo com um de nós. De um momento para o outro não precisavamos dizer mais nada. Ficamos ali apenas bebericando e fumando. Os caminhos estavam se estreitando cada vez mais. Não dava para correr na direção contrária, lá também já tinham colocado barreiras. Eu não sabia a senha. Um pássaro congelando no inverno não tem pena de si mesmo. O velho Hemingway tinha razão. Nada de Deus, nada de família, nada de grandes discursos no funeral, sem obra para a posteridade, sem grupinho de amigos para fazer barreira contra a verdade de nossa decadência, infinito gozo sincero que se perde nessa súplica enviada para coisa nenhuma, para o nada, enfim estamos chegando ao cais, no caos nós já nascemos. Rachamos a conta e nos despedimos. Cada um para as reclamações e lamentos de suas recíprocas patroas. O Batalha e eu. Ainda inteiros, ainda inteiros.

domingo, maio 09, 2010

Consumatum est (menino partido)

Aquele menino quebrado
Ainda sabia voar
com asas de seda dourada
na imensidão de um céu impossível.
Mesmo forrado de desgostos
vendo a própria mãe
Sem orgulho atormentada a chorar.
Ele ainda acreditava nas coisas, ainda olhava brilhantes
Estrelas e rabiscava versos horríveis
Que lhe pareciam tão lindos e puros
Quanto a polpa celeste
De sua alma partida.
Aquele menino poderia aprender a cantar
Poderia salvar muitas vidas
E construiria para vocês uma pousada segura
Após a tempestade dos dias.
Aquele menino resistiu de tantas formas
Guardou em caixas de papelão pequenos pedaços
De coisas sutis que se desfaziam a cada NÃO
A cada dia cruzando seus olhares
Tentando contornar os portantos
Até que desistiu
Ele abandonou-se e desapareceu
Esperando tê-los deixado orgulhosos
Com o vosso trabalho bem feito.

Apreciação do açougue

Acabei de chegar. Coloquei as chaves e a carteira sobre a mesa, joguei uma água na carcaça, abri uma garrafa de vinho e sentei para escrever. Tinha ido até o subúrbio levar uma frango para minha mãe e ver minha filha na casa de minha ex-mulher. Um tormento, a começar pelo transporte lotado com estorvos gritando como se estivessem sendo currados. As pessoas me olhavam quando eu passava, como se assombradas com o fato de eu não lhes dar a mínima, ou tentar não lhes dar pelo menos. Muito, muito barulho. Caras marcadas e feias, olhinhos arrogantes a vazios. Segurando suas coisinhas, suas mulherizinhas, celulares, carros e óculos escuros até dentro do ônibus. Estúpidos. Minha mãe estava lá. Com sua música evangélica como sempre. A mesma que era há trinta anos, conforme posso me lembrar. A casa imunda com pratos e roupas sujas amontoadas nos cantos. Fez uma festa quando me viu, ou quando viu o frango e o peixe em posta que eu levava. Claro que ela não precisava levar a vida daquele jeito, mas foi exatamente assim que ela passou a maior parte da vida. Reclamando, lembrando do passado, sem dar nem mesmo meio passo pra frente. Minha irmã mais nova estava lá também. Estirada no sofá. Me pediu dinheiro para beber. Era só o que sabia fazer, além de trepar, é claro. Dei um trocado a ela e fui ver minha filha.
Estava de cara fechada como sempre. Uma criaturinha que já tinha sido tão doce e alegre, tão suave e vivaz quanto um girassol infinito brilhado no horizonte está se tornando cada dia mais cheia de raiva e de azedume, como aquelas carinhas doentes que vejo nas ruas aos milhares.A responsável pela degeneração i me gritou de dentro da casa. Um monstro de varizes, tecido adiposo e rancor amargurado que um dia já se deitou em minha cama, minhas tripas se contorcem só de imaginar. Eu havia presenteado minha filha com uma câmera fotográfica que deu defeito no dia seguinte, apesar de ser nova. Foi motivo o bastante para ela espumar pela boca enquanto gritava, ameaçava e lembrava de coisas enterradas no passado. Uma visão dantesca, irritante, mesquinha. Minha filha estava ali, dia e noite vivendo a sombra daquele monstro venenoso, amando uma víbora que lhe enxertava no coração pestilência, inveja e raiva.
Saí arrasado. Desejando que a raiva daquela criaturinha a fizesse explodir em um milhão de minúsculos pedacinhos. Comprei uma garrafa de vinho no caminho. Já estou no segundo copo. Um centopéia negra se move no canto da sala, eu sou sua janta e ela está cansada de morder apenas minhas extremidades. Não vou cruzar com nenhum Buk nem nenhum Jidu pelo meio do caminho. Não poderei começar de novo, descobri subitamente que minhas raízes estão definitivamente cravadas na lama suja, que não nutre, apenas suga e consome a minha energia. O beija flor pousou na cerca, não encontrou flores sem mercúrio, o muro está cada vez mais alto. Preciso de mais um copo.

sábado, maio 08, 2010

Betwen rock and hard place

Quando minha dentadura racha
quando fogos de artificio anunciam um
ano novo
com velhas alucinações,
no natal
dia-das-mães
carnaval
e em outras ocasiões insólitas que o
pesadelo inventou para ilustrar
o meu tormento
me dou perfeitamente conta
com uma lucidez brilhante
que o tempo passa muito devagar
e que eu estou durando mais que deveria.

quinta-feira, maio 06, 2010

Condições

Eu não tenho uma frase completa
Mais desejo muito mais que teu corpo
Mais que o beijo das flores e menos que a vastidão
De meu peito,
Abrigo para as nossas feridas e sutura para essa fonte de medos
Teu seio perene de menina marcada sem teu ciúme de
Quem não sabe viver,
Não poderei nunca mais retornar ao que fui
Nunca mais anular teu traçado nem esvaziar o seu cheiro
De mim
Contudo eu grito com gestos destinados a tombar
No vazio,
A tombar nessa luta tão linda
inútil, cega e sem fim.

em 89

Em 89, quando a maioria dos garotos da minha idade estavam divertindo-se com as partes mais interessantes da vida eu estava completamente atordoado por não saber o que ia comer no dia seguinte, e pior, por saber que não havia com quem contar para resolver esse problema. Foi quando conheci a Jane. Uma cristã mitomaníaca que viva de fantasiar a própria vida e contar coisas impossíveis sobre o próprio passado. Por exemplo: ela dizia ter tido um ex-namorado que era ao mesmo tempo almirante da marinha, faixa preta de caratê, dono de uma grande fabrica e tinha uma casa no méxico. Além disso Jane também era uma ninfomaníaca moralista e a cada acesso de furor sexual incompleto sobrevinha uma maré de culpa de auto-punição religiosa. Foi assim que eu inaugurei minha vida sexual com as mulheres. Para um sujeito mais pobre que a média da miséria do bairro miserável onde vivia era muito difícil arranjar uma garota minimamente sadia. Uma coisa muito insólita e triste. Isso tudo me empurrou durante um tempo para uma atitude mais ressentida e mística durante um tempo. O amor é uma coisa perigosa quando não se tem algumas cartas na manga, quando se está tateando as cegas e não se aprendeu ainda que não há escolhas sem um preço.

quarta-feira, maio 05, 2010

Disposição

As coisas estão repartidas
Os amores estão todos marcados e suas cartas
Não te asseguram nem sequer o repouso.
Você possui cinco vozes no peito, e todas elas
Não sabem cantar uma só canção
De ternura.
Tudo é apenas distância,
Trincheiras sangrentas e valas
Onde as coisas estão repartidas,
Onde os territórios estão todos cercados
Onde as frutas contabilizadas a prazo
Pesam nas palavras da rua
E nenhuma é reservada para ti.
Mas se tens a garrafa vermelha
a palavra voadora para si
e algumas disposição corajosa
para enfrentar de pé
o luar
o seu gesto trará uma certa nobreza
algo forte e secreto
que coisas fáceis não tem.