domingo, abril 20, 2014

Aos pedaços



Então você vai dormir, exausto e desgastado, e acredita que terá um noite de sono profundo; no entanto sonha. Você está sendo fatiado, eviscerado, mas não sente dor. Seus pedaços deslizam por uma esteira onde milhares de outros pedaços também estão deslizando. Seu braço agora está na altura de sua cabeça, do lado direito, e do lado esquerdo sua coxa mutilada também desliza e você pensa "eu até que tinha pernas bonitas." 
Então alguém pega sua coxa direita - só agora você percebe como seus pedaços são pequenos - e a coloca em uma lata de sardinhas ao lado do seu braço esquerdo. Você vê o cuidado da pessoa que faz isso e fica agradecido pensando " como seria ruim se ela deixasse um dos meus dedos de fora da lata." 

Você vê um óleo sendo derramado sobre seus fragmentos, em seguida a lata é fechada. Chega a hora de sua cabeça. Os dedos imensos te pegam e colocam na lata. Você até que sente um alívio. "pior era ficar sendo arrastado e mutilado na esteira." Depois vem o óleo e a escuridão. 

Você acorda. Tenta se levantar: não consegue. Seu pescoço doí quando você tenta virar. Está ali, de barriga para cima como uma tartaruga estúpida que foi vítima da brincadeira de um garoto mais estúpido ainda. Você gostaria de se lamentar, de pedir ajuda, mas se limita a suspirar e sorrir com sarcasmo dizendo para si mesmo:



- Está ficando cada dia mais engraçado

segunda-feira, janeiro 20, 2014

Como vencer Sendo um Perdedor.

Nunca me senti muito a vontade entre outras pessoas.  O pouco de  sociabilidade que tenho hoje foi resultado de um longo e penoso esforço para direcionar minha misantropia incontornável.  As salas de aula foram meu primeiro contato com o inferno.  Simplesmente detestava a escola. Não gostava, principalmente,  do permanente clima de competição entre as pessoas; aquilo me cansava,  me moia por dentro, e me fazia detestar ainda mais os espaços públicos.  Mas era inevitável que eu acabasse participando de algum modo daqueles jogos, era isso ou o ostracismo, o subsolo do inferno. Não preciso dizer que sempre me dei mal nessa tentativa,  e não era o único. Havia um outro garoto,  acho que o nome dele era Gilmar. Era um garoto magrela, de grandes orelhas, e um nariz que sempre era alvo das maiores gozações. No futebol sempre levava rasteiras, ou pior,  ninguém o escolhia e ele ficava no canto comigo em silêncio.  Não havia dúvida,  Gilmar era,  assim como eu, um grande perdedor. Mas havia  uma diferença importante entre nós dois. Enquanto eu me lamentava ou  escrevia poesias Gilmar nunca dava a impressão de que estava na lona. Se alguém fazia uma piada sobre  seu imenso nariz ele fazia outra ainda maior sobre o mesmo assunto.  Se alguém falasse de sua magreza ele, com toda certeza,  tinha algo bem escroto para falar sobre isso. Gilmar não perdia tempo se lamentando ou tentando impressionar.  A atitude dele  deixava todo mundo atônito.  Não disputava as garotas mais bonitas,  ia sempre certeiro naquela que ninguém queria chamar para dançar e a tratava como uma princesa, de modo que as bonitas acabavam ficando com inveja.  Gilmar tinha estilo.  Sempre estava no chão,  mas aprendeu a fazer dali um lugar  bonito, digno, honrado. Com aquele garoto eu aprendi uma das grandes lições de minha vida. Nunca o vi falando mal dos garotos que se davam bem, nem das garotas lindas que não lhe davam condição. Seguia em frente, se virava como o que aparecia, e se em algum momento ele chorou ou ficou desesperado, nem eu nem ninguém jamais soube nada sobre isso. Aprendi a respeitar aquele sujeito. Ele de fato sabia como ser um perdedor com a maior elegância. Com ele aprendi a fazer dos meus fracassos excelentes exercícios para o meu estilo.Nesse exato instante em que lembro das lições de Gilmar eu estou entornando a minha terceira garrafa de vinho, sozinho e  destruído. Há algumas horas atrás, quando uma garota  me disse que não queria mais me encontrar, eu não lancei nada de triste ou dramático sobre ela;  apenas falei coisas leves sobre a necessidade de viver  novas experiências e sobre o quanto queria que ela ficasse bem.  Acho que até comentei algo sobre um livro fantástico que ela deveria ler e também sobre a minha necessidade de fazer uma longa viagem - que não iria acontecer, claro -   em breve, de modo que a separação iria ocorrer de um jeito ou de outro.  Ela desligou o telefone sentindo-se uma boa pessoa, com certeza, mas eu fiz isso sentindo-me um velho fracasso, mas é claro que ela não soube nem vai saber nada disso. Meu antigo amigo sentiria orgulho de mim se pudesse me ver agora. Quase consigo ouvir ele me dizendo: 

"Nada de dramas irmão, esses filhos da puta não merecem  o banquete de ver os deuses rastejando."

Ele sabia que as pessoas não tinham nada a ver com esses cancros. Sabia manter as coisas leves e deixar que seguissem como  pudessem ser. Com toda  certeza ele sabia que  mundo era inocente  e que, se não podemos evitar a dor, pelo menos podemos ter o pudor de mastigá-la e digeri-la sozinhos, ou apenas com algumas garrafas de vinho. E isso não me parece pouca coisa, pelo contrário, me parece que é a única coisa coisa digna a ser feita, a ação decisiva. 

E lá vou eu para a próxima garrafa.