quinta-feira, novembro 22, 2012

Desculpas de um louco.


Eu agora estou fingindo que sou forte, que não vou me importar. Desde que foi embora  ela não tem mais inspiração para escrever uma linha, eu sei. Conheço o editor do jornal no qual ela trabalha. Antes era uma produção frenética. Um poema por dia. Um conto por semana. Tinha planos para o seu terceiro romance. Disse-me que eu destruí sua vida, que eu trouxe fogo loucura e maldade. Tudo mentira, eu trouxe foi poesia para ela. Isso. Eu trouxe inspiração e uma nova perspectiva sobre tudo. Estou dizendo essas coisas para mim mesmo para me convencer de que tenho razão. Essas coisas não chegam de graça. Ela também teria que fazer suas concessões. A poesia é um pássaro que jamais irá voar em linha reta. Ela deveria saber disso, mas não sabia. Estou muito ansioso. Gostaria que ela estivesse aqui, com seu brilho, seu sorriso e sua força. Mas a poesia, a vida,  a tarefa de me manter vivo e inteiro, tudo isso era mais importante. Um dia, por exemplo, estávamos transando quando repentinamente me veio à cabeça uma ideia para um novo romance. Imediatamente broxei porque a corrente da vida passou a escoar por outros canais. Levantei da cama deixando-a ainda esperando pelo meu próximo movimento e corri para a escrivaninha para digitar meu próximo conto, ambos nus ainda, eu e o conto. Agora estou indo trabalhar e meu emprego não tem nada de literário. Apenas gente impaciente querendo seu pedaço suculento de carne moribunda. A minha esposa também não entende. Quer simplificar tudo em causa própria. Um amor deveria bastar, ela pensa desse jeito, e não está sozinha nesse pensamento. Pessoas tacanhas. Cérebros de avestruz. Não percebem, não sentem,  que a fome de vida  gritando no peito como é como  um porco sendo esfolado. Não se contêm, não fica parada. Eu estou agora contando os trocados o cobrador me olha na cara e deve achar que não posso pagar a passagem. Mas eu pago. Que decepção para esse sujeito mesquinho que gostaria de  me esmagar dessa vez. Eu passo por uma senhora de amplas medidas, ela me olha de canto de olho, me acha desprezível, eu sei. Acho que eu gostaria de ter algo para o quê rezar. Esforço-me para imaginar um Deus no qual valha a pena acreditar, mas não consigo. Fecho os olhos: Só me vem à cabeça minha mãe na cama de um hospital miserável que a fez esperar por exame que nunca veio. Vem-me à cabeça sua morte. Vem-me à cabeça sua vida sem sentido, pulando de marido em marido enquanto os filhos eram relativamente abandonados. Pobres sementes entregues ao acaso de um solo violento. Nem no abandono fomos completos. Isso é triste. Abro os olhos. Desisto de rezar. O som do cara ao meu lado está alto. O que ele ouve é lixo, mas ele acha que todo mundo gosta de lixo, que o lixo é uma coisa legal. Então ele distribui lixo para todo lado. É assim que as pessoas tentam ser legais. Eu não sabia ser legal. Isso sempre foi um problema. Não sabia adivinhar o próximo movimento, o próximo lance, o que as pessoas gostariam de ouvir. Quando tentava fazer isso eu me tornava patético, risível, estúpido. Agora eu aprendi. Agora eu sei ser legal. Você precisa ver como me tornei um sujeito legal. “Olá senhora fulana” “Bom dia senhora Betrana”, “Muito obrigado por me ferrar senhor fulano”. Ah, por dentro eu rio e desprezo, como são estúpidos!
Mas, falando de novo daquela paixão, ela sim foi estúpida! Eu lhe dei a rara oportunidade de lançar um olhar para o outro lado do muro, mas ela só queria uma aliança. Que bobagem carola! Como é que se pode extrair arte verdadeira das entranhas de uma igreja? Um cadáver cantando? Ah, mas me faça um favor! Porque vocês não vestem logo um manto sacerdotal e dedicam-se à nosso senhor? Fidelidade, casamento, dar satisfações à família? Frio ou quente, não é isso? Senão vos vomitarei da minha boca! Não sou eu que digo, é o próprio e sagrado evangelho! Mas ela queria ser morna. Queria a loucura entre as paredes de um condomínio e depois de me apresentar às amigas. Por isso saiu por aí gritando feito uma louca que eu a destruí. Mas veja, mesmo nesse momento eu enchi a vida dela de poesia. Os seus últimos contos foram sobre a minha imaculada pessoa. Mas não é assim. Eu a queria aqui. Sim. Estou apenas me desculpando, desculpe. Sou louco. Sou louco. Sou louco. 

sábado, novembro 10, 2012

Mantra da incerteza.


Eu gosto dos súbitos instantes em que você percebe que está no meio da multidão e, no entanto, sozinho. Talvez exista algo de patológico nesse prazer espontâneo, é bem verdade. Contudo, não temos muitas escolhas quando nosso estado de espírito não nos parece resultado de outras escolhas. Eu assisto estupefato o espetáculo das massas aglomeradas em torno de cantores, times de futebol e lugares de recreação e não compreendo nada. Não reprovo a ninguém. Nada me parece baixo ou vulgar. Contudo, não os compreendo assim mesmo. A previsibilidade me assusta. Temo ser flagrado sendo óbvio como se isso fosse um crime e, no entanto, não posso negar que existe alguma obviedade nisso também. Mas isso é só um jogo de palavras. Os jogos, os esportes, as religiões, aldeias, ideologias, rituais familiares, convicções...tudo que dota a alma de um verniz de estabilidade e segurança que me causa repulsa. Gosto das coisas imprevisíveis, dos amores cegos, das paixões sem expectativas, dos lugares para os quais ninguém olha, dos caminhos abandonados do recorte desassistido de uma árvore contra um céu sem atrativos. Não entendo também porque cheguei nesse ponto. Não pretendo me justificar. Nem sei por que escrevo agora. Talvez em função de um estado de espírito passageiro, do qual não me lembrarei dentro de alguns minutos, que leva os meus dedos a se movimentarem sobre o teclado. Se você está lendo essas linhas agora isso também é por puro acaso, porque não penso nem por um segundo em lhe agradar com o que escrevo. E se você não lê isso só confirma o fato de que sou bem sucedido em minha desatenção às suas expectativas. Se nada na natureza tem finalidade, porque haveria a arte, ou a vida,  de ter um sentido? Esse é o motivo, penso, para existirem tantas perguntas e tão poucas respostas plausíveis. Encontro, quando não estou imerso no desespero, um valor infinito na incerteza e em tudo que é frágil. Não preciso de metafísica nenhuma para isso. Só preciso sentir e deixar que um sentimento dê lugar ao outro como um rio poderoso a arrasta em si tudo que existe. A multidão parece não perceber, mas não quero condená-los. Quero apenas me afastar deles para não reter o ritmo incessante dos meus fluxos e refluxos. Quero ser meu estar, meu infinito ir e vir que me enlouquece, me extasia e que talvez me destrua, mas é tudo que tenho de mais valiosos, mais nobre, mais simples.