quarta-feira, janeiro 26, 2011

Sobre entregar a rapadura.

O Leandro sempre me pareceu um sujeito tranqüilo, mas nos últimos tempos andava bastante ensimesmado. Algo lhe perturbava, era possível perceber. Já não participava das rodas de bate papo, não comparecia as reuniões da velha guarda para tomar uma cerveja e conversar sobre filosofia. Permanecia apático e silencioso no canto dele como eu mesmo muitas vezes já houvera ficado também, mas no meu caso isso era bem mais normal. A mulher dele parecia não perceber essa mudança, continuava a mesma mulher de sempre; cuidava da casa, lavava as roupas de ambos e até parecia mais feliz que de costume e o motivo era óbvio. É que o Leandro já não saia para a farra e certamente já não vivia as costumeiras aventuras de sempre e qualquer que fosse o motivo dessa sua redução ao sacerdócio do lar, sua mulher (é claro), não podia deixar de vê-la com bons olhos.
A maioria dos rapazes também não percebeu a mudança. Nossa amizade sempre foi muito irregular e contingente. Não tínhamos data certa para nos reunir. Acontecia uma vez ou outra quando um de nós resolvia ligar para os outros e marcar, mas todos compareciam. Embora fossemos anti-sociais em relação a maioria das pessoas entre nós mesmos éramos muito leais. Sujeitos sem muita expectativa ou recursos mas com a convicção partilhada de que o brio e a admiração recíproca é tudo que temos em meio as trincheiras. Lembro-me que foi exatamente o Leandro quem alertou-me certa feita para o livro do Robert. M Piercing O zen e o Manual da Manutenção de Motocicletas. Dali extraímos o termo Briologia que passou a constituir a viga mestra de todo nosso edifício de valores construído em meio a garrafas de cerveja, narrativas de sucesso e de fracassos afetivos, falta de grana e etc. Nunca soubemos ao certo o que essa palavra significava. O estudo do Brio, que pode ser entendido como uma forma de honradez, lealdade, auto-afirmação admiração sincera pelos pares etc.Enfim o brio era o que impedia, nas palavras do Bukowiski, um homem de “entregar a rapadura”, e Leandro até então nunca tinha entregado.
Bom o fato é que um dia nos encontramos acidentalmente num evento da academia. Como eu, ele tambem era um egresso das classe menos alfabetizadas e que havia entrado pra vida acadêmica para fugir da deprimente condição de trabalhador braçal no Brasil. Leandro parecia mudado, sem aquele brilho feroz no olhar. Estava estudando Karl Marx e um certo constragimento foi inevitável quando o encontrei. Havia cedido a pressão, foi o que pensei, entregou a rapadura Falou alguma coisa sobre filiação partidária, algo estúpido para perguntar a alguém como eu; Leandro já soube disso algum dia. Nos despedimos e saí dali com uma idéia na cabeça. Uma sensação meio stirneriana de que o mundo é uma casa assombrada e por não resistir ao medo que causam os fantasmas as pessoas terminam enlouquecendo, convertendo-se elas mesmas em possessos. Isso quando as famílias não obtêm o sucesso em torná-las possessas desde a infância. Possuídas por ideais, palavras, metas e exigências que lhes dão a sensação ilusória de que existe algo como um grande capitão no leme do navio. Mas eu sei que não há, ou se há, com certeza saiu para almoçar E OS MARINHEIROS TOMARAM CONTA DO NÁVIO.

(um) Trago

Trago um tormento confuso,
uma fome inquieta e calada
Que me mantêm escavando ruínas,
Que me prende a condenação da estrada

Carrego mapas e contas,
Delírios que fariam sorrir minha filha,
Uma esperança que se agarra nas pontas
que sobraram do jantar da matilha.

Uma revolta cortesã, caprichosa
Diabos da ausência de vício
Uma cabeça atolada de estudos
Um coração de mil precipícios.

Um jeito de amar complicado,
Escrito em um dialeto assírio
Que precisa se manter bem guardado
Para perdurar sem martírio.

Trago no alforje essas relíquias e mais
Outras coisas que a batalha me cala
Tentativas de redenção sem ter paz
Amores para viver sem escalas.

segunda-feira, janeiro 24, 2011

Condicional

Se queres calor, te ofereço
o meu vinho em chama.
terremotos na superfície da pele
e o repouso posterior dos
amantes.
Se for pela fome de um clarão partilhado
te entrego sem gestos sombrios
a polpa plena de meu ser inquieto.
Na alameda dolorosa da vida
dois indivíduos sensíveis se dando
a cada instante em que os rios
convergem.
Se vieres sem o peso das obrigações,
sem a história antiga de culpa e
combate,
ainda tenho morangos que preservei das tormentas
e o carinho desarmado de quem precisa de alguém.

quinta-feira, janeiro 20, 2011

Reconciliação com a terra.

Se o amor é um impulso cego,

É melhor condenar-se ao inverno.

Se não nos orgulhamos do leito,

Estaremos envenenando a fonte

Onde buscamos água e descanso.

É preciso defender-se contra os covardes,

Contra a palavra dos velhos, a fofoca das mães

E o medo daqueles que ficam.

Para que o amor coexista

com a impermanência das coisas finitas

e colhamos os malmequeres do agora

com a canção do sim entre os lábios.

Pois se o amor é uma corrente que arrasta,

Estamos dormindo sobre um precipício,

Fazendo da dor um vício,

Por negarmo-nos a refazer nosso sonho.

O leito e o sonho não podem coesistir

E o combate entre os dois torna o

Horizonte bizarro.

Se o amor não admite razões então é melhor não amar,

E poupar para outros espaços a força de nossa energia

Alada.

quarta-feira, janeiro 05, 2011

Carta aos meus desafetos

Eu sou mesmo esse canalha delinqüente
Que perfurou seu coração todinho
Sacripanta, arrogante, impenitente
Que atirou de canhão num passarinho

Sou mesmo aquele que retalhou seu coração
Depois com garfo e faca comi na sobremesa
Banhei sua feridas com suco de limão
Bebi todo seu sangue como se fosse framboesa

Eu que roubo moedas de pedintes
Atropelo aleijados para não me atrasar
Me aproveito das donzelas que gostariam de casar.

Um monstro, um sicofanta, depravado
Um imundo que aos próprios olhos
Sente-se inteiro, sublime, iluminado.