Minha vida é uma coisa que não tem nada de muito especial. Nem eu, por conseguinte. Apenas alguns padrões estranhos, algumas carências surdas, algumas solidões inusitadas e muito cansaço. Esse cansaço de muitos combates por causas abandonadas, esse combate que deixou tantos mortos e histórias sangrentas no subsolo do meu edifício. Vi alguns personagens estranhos em minha vida. Algumas pessoas meio tortas, meio toscas, fantasmas encarnados que se quebraram nas onda
O Neideval foi um deles. Um menino que vi crescer, uns sete anos mais jovem e que por entre as contradições da família se tornou surfista. A mãe e os irmãos cristãos, o pai um semi-tirano disfarçado que sempre me recebia com um sorriso falso, odioso e mal. Morando na favela, sem os recursos materiais necessários para a auto afirmação mas achando-se muito esperto Neideval viu no surf um outro eu. Eu para ele era o tosco, divagador, o comedor de livros que não comia ninguém. Com o Surf vieram as drogas, a loucura, o Rock. Não gostava de muita reflexão. Era avesso as nossas divagações platônicas. Ele achava que isso não era divertido. Neideval um dia enlouqueçeu, começou falando com sombras e terminou com o olho partido. Converteu-se à igreja evangélica como a mãe e os irmãos. Agora tomava remédio controlado. Não sei se o problema era biológico ou existencial, aos meus olhos ele nunca teve nada parecido com bom senso. Não tive mais notícia dele, mas sei que já não surfa.
Teve também o Ednaldo, um sujeito que gostava de ficar bêbado para externalizar seu sentimento de fracasso ao som do heavy metal. Andava junto com as pessoas que andava comigo e por isso faz parte dessa história. Uma coisa curiosa, assim como Neideval ele também não falava do próprio fracasso. Todos eles queriam parecer o que não eram, e a contradição era visível a olhos nus. Meninos fracos e sozinhos espremidos pela loucura familiar ou pelo abandono da família. Ednaldo também tornou-se crente numa certa altura da vida. Substituiu uma embriaguez por outra e continuou sustentando a mesma mentira a seu respeito. Um dia foi hospitalizado. Comeu alguma coisa infectada e um verme alojou-se no seu cérebro. Morreu pouco depois.
O Paulo foi um caso a parte. Muito protegido pela mãe, que por sinal me detestava por me considerar um vagabundo sem família (o que em certa medida era verdade) Paulo não namorava e a sua juventude resumia-se a estudar, jogar voley uma vez ou outra e colecionar revistas em quadrinhos. Um dia ele deixou de frequentar as quadras dos jogos de voley e enclausurou-se em casa e nos estudos. Pouco depois passou nos exames dos fuzileiros navais e desapareceu definitivamente. Noivou com uma garota, sem que ninguém soubesse de qualquer experiência afetiva anterior, noivado que durou alguns anos e terminou sem muitos motivos. Um dia soubemos que ele se tinha enamorado de um outro amigo nosso de velha data, o Rafael, e por esse amor inusitado deixou de falar a mãe dominadora e com os amigos de quem sempre escondeu as preferências.
Houveram outras vidas assim em minha vida. Dezenas delas. A Jucimeire, estrangulada pelo ex-namorado traficante que não aceitava separar-se de uma das poucas garotas brancas do bairro. O próprio Rafael, menino triste e inquieto que já fora meu aluno de arte marcial, que encantou-se com o romantismo marginal das drogas e que, ao que parece, encontrou no amor do Paulo uma forma de sustentar o vício. O Jorge, louco que contornava o meu quarteirão centenas de vezes no mesmo dia e que, segundo diziam, havia enlouquecido depois de atropelar uma família quando era motorista da coca-cola. Um dia acharam o corpo dele preso a uma hélice de navio na maré. Aparentemente os remanescentes da família assassinada o haviam amarrado a uma pedra e lançado ele na água.
Os assassinados pela polícia, as espancadas pelos caras bacanas, os homossexuais religiosos, os de boa família que se tornaram policiais psicóticos, as esposas loucas e assassinas...agora você entende porque não tenho motivos para me orgulhar do meu passado.