Nem tudo foi ruim em minha
adolescência. Por exemplo, nos finais de semana eu ia nadar na pequena
península chamada “baia dos tainheiros”
e depois jogar voley na areia
imunda da pequena praia que terminava nos pés da igreja de nossa senhora do
Lobato. A agua já não era muito limpa naquela época, mas era a única opção de
diversão para mim e para dezenas de outros jovens pobres em um bairro que não
tinha sequer uma praça ou uma quadra de esportes. Era muito bom exibir o que eu
achava que eram os meus dotes de nadador para as garotas. Claro, eu nadava tão
bem quanto um macaco se afogando, mas eu não sabia disso. Claro que eu não impressionava
ninguém, mas a expectativa de ser focalizado por um par de olhos femininos era
muito boa. Um dia até consegui beijar uma garota na praia, quer dizer, quase beijar.
Nesse dia eu estava com a máscara de mergulho do meu tio que eu havia pegado
sem permissão. Me exibia com a máscara diante dos olhares extasiados dos outros
meninos. Até uma linda garota, com traços de índia, cabelos lisos e negros, me
pediu para experimentar. Era minha deixa. Sugeri, grande capitalista que sou, que permitiria que ela usasse os óculos se me desse um beijo.
Ela concordou, mas o beijo teria que ser embaixo d’agua para seus pais não
perceberem. Sem alternativas eu aceitei , mas a coisa toda foi bem complicada. A água era
meio marrom e, como tinha emprestado a máscara pra ela, não dava pra enxergar nada lá embaixo. Quando
eu mergulhava não conseguia unir nossos lábios no tão desejado beijo. Ela vinha
ao meu encontro e eu me desviava tentando ir ao encontro dela. Uma breve
alegoria do que seria a minha vida afetiva depois de adulto. Quando finalmente
conseguimos juntar nossas bocas, o nervosismo foi tão grande que dei um solavanco
no rosto dela e a máscara de mergulho se perdeu no fundo lamacento da maré.
Minha tarde havia acabado. Com o peito em frangalhos fui para casa imaginando
como iria explicar ao meu tio que havia perdido a sua máscara de mergulho que
ele sequer sabia que estava em minhas mãos. Pior, havia perdido uma das poucas chances que
até então tivera para beijar uma garota.
Uma outra chance dessas só ia
acontecer no Natal. Apesar de detestar festas de final de ano em 1990 eu fazia
parte de um pequeno grupo de dança. Alguns colegas haviam se juntado para ensaiar
coreografias com musicas dos anos 60. Foi uma das poucas épocas de minha vida
em que eu estava plenamente integrado com a sociedade, em que vivia cercado de
amigos descolados, em que eu via garotas e cogitava a possibilidade de beijar
várias delas. Na verdade havia uma menina em especial que parecia querer me
beijar e apesar de estarmos em plena década de 90, para meus padrões
retrógrados, um beijo ainda era muita coisa. Seu nome era Tatiane e era linda
como um pôr do sol sobre um milhão de girassóis. No pleno esplendor de seus 16
anos ela era uma preciosidade. Loura, de cintura fina, seios pequenos, olhos
levemente puxados e lábios bem desenhados que se abriam em um sorriso devastador
para meu pobre coração de menino atormentado. A grande oportunidade de beijá-la
iria aparecer no baile de natal onde o nosso grupo de dança iria se apresentar.
Mas havia um empecilho: o traje para a
festa. Acho que falei em outro lugar que
eu só ganhava trajes novos no natal, de
modo que meu guarda-roupa se resumia na posse de uma ou duas calças jeans, três
camisas, um par de sapatos (geralmente com o solado furado ou descolando) umas
4 cuecas (me envergonho de comentar as
pequenas dificuldades oriundas desse detalhe) e 3 bermudas. Eu tinha uma tarefa terrível pela
frente, convencer minha velha à me dar roupas de natal que servissem para o
baile. Minha relação com minha mãe nunca foi das melhores, é verdade, mas nessa
específica situação ela foi bem sensível e concordou em cooperar. No final de
semana anterior ao da festa percorremos juntos toda a extensão da barroquinha e
da baixa de sapateiros procurando uma combinação de calça-sapato-camisa-preço
que servisse para os meus propósitos e para os dela também. Não foi fácil, mas
achamos alguma coisa. Era óbvio que por aquele preço algo tinha que dar errado,
mas eu não tinha condições de pensar nisso naquele momento. No dia do baile eu
estava elétrico. Era a primeira vez que Juan Leon estava no centro da cena e
não pelos cantos maldizendo o destino. A coreografia começou; ia tudo bem. As
pessoas olhavam atentas os meus movimentos precisos como os de um Barishnikov
da favela. Era a redenção. Imaginava-me dentro de “Os Embalos de Sábado à noite”
e eu era o “Tony Maneiro”; a minha Olivia Newton John me sorria e dançava
comigo colocando seu braço suave em torno do meu pescoço; eu era o homem seguro
que a conduzia pelo salão. Em um dos movimentos da dança eu levantei a perna um
pouco mais e a calça rasgou-se no fundo com um ruído desconcertante. Os demais
não perceberam em função da altura da música, contudo eu sabia. O solado do sapato
também começou a descolar mas com uma resignação estóica eu consegui manter o
sorriso de plástico no rosto até terminar a dança sob aplausos. O pessoal foi
para a mesa reservada para o grupo, elogiar-se mutuamente e colher os louros de
suas performances. Eu me arrastei até o ouvido de Tatiane e lhe disse baixinho:
-Tenho que ir embora. Ela me olhou
decepcionada e aquilo também devastou meu coração. Era a primeira vez que uma
garota bonita esperava algo de mim além da distância. Mas não suportaria deixa-la
saber do pequeno incidente com minhas calças e sapatos. Disse que havia torcido
o tornozelo e por isso estava andando
daquele jeito curioso, parecendo um velho marreco. Despedi-me dos demais e fui
para casa sozinho. Estrelas curiosas me olhavam da distancia. Acima delas
alguém devia estar se divertindo muito.