Agora os piores
dias já passaram, não há porque falar de tudo aquilo novamente. Não seria
honesto da sua parte. Seus problemas agora se parecem cada vez mais com os
problemas de todas as pessoas. Você ouviu a voz do bom senso, tentou ser justo
para com suas próprias necessidades e com as necessidades alheias. Evitou os
caminhos tortuosos, manteve sua palavra, deu escolha às pessoas e foi prático.
Sim. Você fez tudo desse modo não fez? Foi a um psiquiatra, fez Yoga, terapia e
quando o peso foi muito grande você não se embebedou como fazem essas pessoas
de pouca visão; você tomou os comprimidos receitados para a ansiedade, para a
culpa, para a dificuldade de dormir. Você tentou ajudar quando pôde, se
esforçou para fazer um bom trabalho. Agora quase tudo parece certo em sua vida.
Você está melhor a cada dia. Vive em uma casa ampla e iluminada e não em um
subsolo escuro; repleto de livros e poeira. É verdade que há muito tempo você
não escreve nada autêntico com mais de dez linhas. É verdade que você hoje teve
uma noite péssima porque sua médica começou a diminuir a dosagem de seus
comprimidos. ´Também precisamos encarar o fato de que você parece quase incapaz
de sentir tesão por qualquer pessoa, atividade ou pensamento. Mas esses são
estágios intermediários em seu processo. Afinal, você não está completamente
anestesiado não é? Você desfruta, eventualmente, de alguns momentos de carinho
e ternura na companhia de sua namorada, correto? Você também fica feliz com a
alegria de suas filhas e sofre quando sabe que elas estão sofrendo. Você também
não é completamente indiferente às lutas de seus irmãos. É tudo uma questão de
tempo e as coisas irão gradativamente se acomodar em um padrão mais
equilibrado, sem tanta intensidade, sem tanta frieza.
Sei, você acha
que não vai acontecer desse modo. Acredita que algo aí por dentro ficou
terrivelmente comprometido por suas escolhas ou por seu destino. É natural
pensar assim, já que você não se acha merecedor de nada de bom. Sabe, as vezes
nós nos defendemos da alegria. Como assim? Bem, é relativamente simples. Para
acreditar que merecemos coisas boas nós precisamos acreditar, em primeiro
lugar, que essas coisas boas existem ao nosso redor e que elas também estão
disponíveis para outras pessoas. Se a criança, visando defender-se das
frustrações, desvalorizar os bens do
mundo que a cercam ela também irá desvalorizar a si mesma; o sentimento que a criança tem de si mesma
depende em grande medida das experiências produzidas por sua relação com o
mundo que a cerca. Quando desertificamos
nosso mundo lhe tiramos o poder que ele tem de nos decepcionar, mas também lhe
tiramos a capacidade de nos alimentar. Muito poético? Apenas mais uma
explicação? O que você acha que pode conseguir além de explicações? Há, você
gostaria que eu conseguisse compreender, descrever, exatamente como você se
sente. Você acha que assim se sentiria menos só, menos perdido? Sei. Todos
pensamos isso. Mas, se minha explicação anterior estiver correta, há um obstáculo
que inviabiliza a realização desse seu desejo. Se de fato você desvaloriza tudo
que lhe cerca, como eu disse antes, você também irá desvalorizar todas as
minhas tentativas de descrever sua experiência pessoal. Por sentir-se
permanentemente ameaçado você sistematicamente evita e rejeita todos os
movimentos do mundo em sua direção. Como um rei que sofre da ilusão de governar
apenas uma população de miseráveis esqueletos você é ao mesmo tempo o homem
mais poderoso e o mais miserável do reino. Não há cura, pois pouco ou muito
todos sofremos de algum tipo de delírio. Contudo, existem possibilidades de
alívio se quisermos abrir mão de nossa posição segura em nosso trono e ir aos
poucos travando contato com as coisas reais, que não são nem esqueléticas nem
divinas. O mundo real da ambígua condição humana.