Palavras acidentais, produzidas em gesto espontâneo para desaparecer em seguida no turbilhão do nada.
quinta-feira, janeiro 17, 2008
Um homem e o seu tempo.
Mesmo depois de já ter passado por tanto aperto na vida, nunca deixam de existir os momentos em que tudo parece perdido. O senhorio hoje pediu a casa de volta. Sou forçado a reconhecer que ele foi mais gentil que a média oferecendo-se para cobrar a metade do valor do aluguel enquanto a minha mulher estivesse desempregada. Hoje a paciência e o altruísmo acabaram e ele reivindicou o imóvel ou o valor completo do aluguel e como eu não tenho esse valor o que resta é o retorno ao subúrbio, a lama de suas ruas, a miséria e as dificuldades em relação ao transporte; é como descer ao fundo de um lago escuro, infestado de monstros, depois de patinar no gelo fino por meses. Na televisão o repórter fala de tiroteios e balas perdidas. Depois de mudar-me vou ter de acordar às cinco da manhã para pegar o ônibus lotado para a faculdade e dormir a meia noite depois de viajar cerca de duas horas entre o trabalho no callcenter e minha casa no Rio Sena.
Minha mulher está na cozinha preparando o almoço. Do outro lado da cidade minha filhinha deve estar saindo da escola e indo para sua casa, também numa favela. Sentado no meu quarto, tomando um gole de vinho e desperdiçando as poucas chances que tenho eu perco meu tempo me lamentando nestas linhas, como se fizesse algum sentido escrever a respeito do que já está resolvido. Por outro lado, isso é a única coisa que me faz continuar. Saber que não importa o quanto à treva avance, eu irei ser a testemunha de meu próprio combate, e irei relatá-lo ainda que seja somente pra mim. Acho que para além dessa minha compulsão de escrever sobre tudo que me ocorre já não me importo e me tornei insensível para muitas das coisas que prometem felicidade ao comum dos mortais, talvez como uma maneira de evitar a dor e o desespero de aspirar por um bem estar inalcançável. Meu coração tem espaços amplos e claros para abrigar a alegria, mas suas paredes desabaram ao serem obrigadas a reter apenas o possível; eu lamento, mas não culpo a ninguém. Tudo é acidental e impermanente. O ser humano adapta-se a tudo. Logo estarei novamente inserido na vida feia e sem horizonte do subúrbio e, por conseguinte irei me mesclar com aquelas ruas sem asfalto com aquela vida sem esperança e irei beber vinho barato, enquanto retorno mansamente ao buraco da lama do qual nunca deveria ter saído. Por que tudo isso? Sei lá! A gente vai tateando, procurando um caminho melhor, ouvindo os conselhos, tentando lidar com os acidentes, e as coisas podem dar certo ou não. Quando elas dão certo nós nos orgulhamos e atribuímos a nós o mérito pelo sucesso (ou a Deus, o que dá no mesmo) e quando dão errado culpamos o destino, nossos pais ou simplesmente... A sorte. Eu simplesmente não extraio responsabilidade alguma de nada, as coisas acontecem assim ou assado e pronto. Nós temos que lidar com os fatos da melhor maneira possível, e eu, mudo e assombrado, não consigo ser outra pessoa senão eu, mesmo sabendo que isso não dá certo.
Minha filha me liga do celular que ganhou da mãe. Quer saber se vou matriculá-la na escola particular como lhe prometi ou se ela vai estudar novamente em uma escola pública. Digo que ainda não tenho resposta. Que estou acertando uns negócios; mentindo para minha filha, é claro que não tenho o dinheiro para a escola. Mais uma vida tendo o seu roteiro escrito à revelia das nossas esperanças. Deve haver algum charme em ser pobre nos Estados Unidos ou na França, no Brasil e na África isso não só é desprovido de charme mais é também patético. Patético como as deformidades faciais, patético como a falta de afeto dos bebuns, estúpido como tartarugas viradas de costas balançando para o ar suas pernas minúsculas. O problema não é “a pobreza”, o problema é a minha pobreza, o meu problema, e vocês dirão que além de derrotado também sou um egoísta, não sei bem o que isso quer dizer, mas tudo bem. Agora tenho que me levantar para tomar banho e ir trabalhar. Gostaria de terminar essas linhas com alguma lição moral ou citando qualquer um desses espíritos iluminados que tanto admiramos, mas meu tempo é curto e minhas preocupações são longas, tão longas que eu vou terminar de virar essa garrafa de vinho antes de me levantar, tomar banho e ir trabalhar com o sorriso vencedor no rosto que meu patrão espera que eu tenha .
Minha mulher está na cozinha preparando o almoço. Do outro lado da cidade minha filhinha deve estar saindo da escola e indo para sua casa, também numa favela. Sentado no meu quarto, tomando um gole de vinho e desperdiçando as poucas chances que tenho eu perco meu tempo me lamentando nestas linhas, como se fizesse algum sentido escrever a respeito do que já está resolvido. Por outro lado, isso é a única coisa que me faz continuar. Saber que não importa o quanto à treva avance, eu irei ser a testemunha de meu próprio combate, e irei relatá-lo ainda que seja somente pra mim. Acho que para além dessa minha compulsão de escrever sobre tudo que me ocorre já não me importo e me tornei insensível para muitas das coisas que prometem felicidade ao comum dos mortais, talvez como uma maneira de evitar a dor e o desespero de aspirar por um bem estar inalcançável. Meu coração tem espaços amplos e claros para abrigar a alegria, mas suas paredes desabaram ao serem obrigadas a reter apenas o possível; eu lamento, mas não culpo a ninguém. Tudo é acidental e impermanente. O ser humano adapta-se a tudo. Logo estarei novamente inserido na vida feia e sem horizonte do subúrbio e, por conseguinte irei me mesclar com aquelas ruas sem asfalto com aquela vida sem esperança e irei beber vinho barato, enquanto retorno mansamente ao buraco da lama do qual nunca deveria ter saído. Por que tudo isso? Sei lá! A gente vai tateando, procurando um caminho melhor, ouvindo os conselhos, tentando lidar com os acidentes, e as coisas podem dar certo ou não. Quando elas dão certo nós nos orgulhamos e atribuímos a nós o mérito pelo sucesso (ou a Deus, o que dá no mesmo) e quando dão errado culpamos o destino, nossos pais ou simplesmente... A sorte. Eu simplesmente não extraio responsabilidade alguma de nada, as coisas acontecem assim ou assado e pronto. Nós temos que lidar com os fatos da melhor maneira possível, e eu, mudo e assombrado, não consigo ser outra pessoa senão eu, mesmo sabendo que isso não dá certo.
Minha filha me liga do celular que ganhou da mãe. Quer saber se vou matriculá-la na escola particular como lhe prometi ou se ela vai estudar novamente em uma escola pública. Digo que ainda não tenho resposta. Que estou acertando uns negócios; mentindo para minha filha, é claro que não tenho o dinheiro para a escola. Mais uma vida tendo o seu roteiro escrito à revelia das nossas esperanças. Deve haver algum charme em ser pobre nos Estados Unidos ou na França, no Brasil e na África isso não só é desprovido de charme mais é também patético. Patético como as deformidades faciais, patético como a falta de afeto dos bebuns, estúpido como tartarugas viradas de costas balançando para o ar suas pernas minúsculas. O problema não é “a pobreza”, o problema é a minha pobreza, o meu problema, e vocês dirão que além de derrotado também sou um egoísta, não sei bem o que isso quer dizer, mas tudo bem. Agora tenho que me levantar para tomar banho e ir trabalhar. Gostaria de terminar essas linhas com alguma lição moral ou citando qualquer um desses espíritos iluminados que tanto admiramos, mas meu tempo é curto e minhas preocupações são longas, tão longas que eu vou terminar de virar essa garrafa de vinho antes de me levantar, tomar banho e ir trabalhar com o sorriso vencedor no rosto que meu patrão espera que eu tenha .
quinta-feira, janeiro 10, 2008
A balada do entardecer.
A praça fervilha embalada pelas batidas primitivas da música popular de minha terra, e eu, escritor fracassado e trabalhador braçal de folga estou em meio à multidão que se deleita e se contorce como um bando de tênias alucinadas. Chamam a isso divertimento. O Jhony me convenceu com muito esforço a abandonar meu claustro ajudado pela minha abstinência sexual prolongada, não fosse por isso as garrafas de vinho e os discos da Billie Holiday não me deixariam sair de casa em mais um final de semana. Talvez o hábito de remoer as chagas, talvez a leitura de muita filosofia, talvez os meus demônios trancados. Mas o Jhony é um bom sujeito, tranqüilo e, com uma cara boa demais para ser filósofo inteligente o bastante para permanecer de pé. Os bares que formam um círculo ao redor do lugar disputam à potência de seus equipamentos de som enquanto as garotas recém saídas da adolescência disputam à potência de seus glúteos. Levando nossa própria garrafa de vinho abrimos caminho através da turba em busca de um pedaço de espaço, uma clareira eqüidistante dos diversos focos de coletividade barulhenta.
Sentamos os dois em um canto mais calmo abaixo de algumas árvores. Existe muita alegria no mundo, sim, muita felicidade. A política é bem melhor e a filosofia também. Alguns são felizes comprando e gastando segundo o direito que eles tem fazerem isso e outros são felizes perseguindo algum ideal segundo o mesmo princípio. As pessoas encontram-se e se despedem quando acham que já não vale a pena. Isso também é muito bom. Sem obrigações, vontade livre, felicidade sim! Não sei por que não estou satisfeito. Talvez porque me falta dinheiro, ou fé. O vinho acaba e Jhony vai comprar outra garrafa. Fico mastigando o filtro de meu cigarro e nada ao meu redor me parece viável. As pessoas falam demais, encontram-se somente para isso. A linguagem é um planeta doce, onde florescem árvores de esquecimento e onde se forjam os laços de recíproco engano que as atiram umas as outras. Mas, a garota de pele clara e lindos cabelos negros caindo em cachos lindos sobre os ombros está me olhando. Algo de esquisito ou repulsivo? Vasculho minhas roupas em busca de algo fora dos padrões. O furo em meu sapato não está visível. Força, Juan Leon a garota está olhando para você, fique firme homem, você não está na lona afinal de contas, ela lhe quer. Seu olhar me atinge em cheio, cobrindo minha pele de uma eletricidade adolescente e eu me levanto lentamente e vou em sua direção. Vitória ou morte. A luz de suas pupilas ou a sombra do desprezo e da dor. – Boa noite – Eu lhe falo tentando esconder a ansiedade e o medo – Tudo bem? – Maldição homem! Dois meses sem uma trepada e isso é o melhor que pode fazer? – Boa noite – Ela responde sorrindo e me encarando em desafio, sou um cara de sorte – Eu queria convidá-la para dar uma volta em um lugar onde houvesse, sabe... menos mundo – Ela gosta do que acabo de falar e joga a cabeça para trás em uma sonora risada que quase encobre os cânticos orgíacos da noite. Depois se levanta ajeitando os longos e negros vestidos e saímos dali conversando. O Jhony pasmo não acredita no que vê quando passo por ele com a garota ao lado. Um calvo fantasma choroso e uma linda dama dos Bosques de Lorien: uma contradição em termos, mesmo assim seguimos.
Atravessamos vielas escuras e nos afastamos da praça, o cérebro procura as palavras certas para a ocasião. Ela me olha de maneira interrogativa e duas olheiras denunciam alguma sombra pairando sobre uma vida que não deveria ter vocação para a dor. Passamos pelas ruas mais ricas daquele bairro pobre, vazias e silenciosas. Seus moradores divertem-se longe dali, longe da feiúra, do desespero e do barulho de seus miseráveis vizinhos que moram do outro lado do bairro. Pergunto o nome da deusa élfica que em silêncio me acompanha: - Camila, ela responde. – E o seu? – Juan Leon, poeta menor, peixe que bóia no mar do acaso, caçador de estrelas decadentes, biógrafo do que não chegou a ser, as suas ordens. Ela ri e me pergunta onde moro, aponto para a constelação sagitária, a esquerda de Andrômeda. Seus olhos brilham curiosos, talvez com algum temor. – Você é um sujeito diferente... O que faz em um bairro miserável como Periperi? – Ela pergunta ajeitando os cachos negros sobre o ombro enquanto retira um maço de cigarros da bolsa. Percebo suas mãos tremendo um pouco e algum tipo de lente opaca sobre o brilho de seus olhos. Falo um pouco sobre aquela história mastigada do menino que perdeu o pai antes de nascer, que tinha uma mãe louca que escondia o almoço e o deixava desmaiar de fome nas calçadas, criado pelo avô hipócrita e suas receitas de moral. Cresceu doente, mas não a doença da pele e do corpo e sim a doença da mente espedaçada, da falta de esperança. Conto essa história a Camila como a história de outra pessoa. Com o orgulho e a altivez de quem não se envergonha, de quem olha para o sol e não inveja outras vidas. Camila ouve em silêncio. Dentro do seu corpo forte, de curvas estáveis, um espírito intenso pulsa em uma respiração profunda. Paramos sob algumas árvores. Ela fala pouco de si mesma, se reserva com o cuidado de quem ainda não cicatrizou. O frio da noite agora beija nossa pele. O que nos trouxe aqui Camila? Além do meu óbvio desejo por suas carnes tensas, por sua boca rubra, por seu desejo quente, o que nos trouxe aqui? Que mão de acaso a jogou no caminho desse pariá sem sorte e sem talento, sem dinheiro e quase sem dentes, que nada tem senão perguntas, fome e uma profunda tristeza. Minhas palavras e piadas sobre os bonecos de papel que se agitam na nevasca acabam. Acendo um dos meus cigarros e olho para o céu.
- Você acredita que podem existir outros mundos melhores que o nosso? – Camila pergunta com uma voz melancólica.
- Talvez minha querida, mas como saber se o que chamamos de mundo melhor, não é apenas um mundo como nós queremos? – E ela poderia ter o que quisesse qualquer garoto bonitinho com bíceps sarado e uma voz de mongolóide. Mas está aqui e pergunta ainda sobre um mundo melhor.
- Eu diria ainda que mesmo em um mundo perfeito, ainda haveria nuvens de dor sobre as auroras do sonho. Camila me olha e sorri. Uma menina rica, ela conta. Mais velha de uma decadente família burguesa que só o dinheiro mantinha de pé, mas o dinheiro acabou, e a outrora punjante força moral da família se tinha tornado patética. A mãe e seu catolicismo hipócrita e ressentido a tornaram um boneco esquizóide querendo manter velhas tradições que já não se mantinham. O pai arranjava amantes muito mais jovens e abandonara a mulher e os filhos. Mas havia algo mais. Um travo amargo de algo tão forte e sujo que as palavras relutavam em traduzir. As lágrimas vieram a seus olhos lindos e eu beijei Camila sobre o farfalhar das amendoeiras. Deixei minha solidão escorrer para sua boca e meu espírito inquieto envolveu sua tristeza. Éramos dois indivíduos sob o céu infinito, gozando do momento breve em que as leis que regem a atração entre os sexos tinham sido anuladas. Eu desejei-a louca e intensamente e senti seus seios fartos arfando sob a camisa escura. Passamos a noite em um hotel das redondezas.
Eu já tinha possuído muitas mulheres. Desde a primeira namorada cristã que eu bolinava por baixo dos longos vestidos, até as putas sórdidas piores que minhas punhetas. Mas nenhuma como Camila. Seu corpo forte e rígido, suas carnes brancas e suaves, o bico marrom de seus seios e a vulva alta que se movimentava como uma planície contorcendo-se nos terremotos. Eu tive Camila. A possui por horas a fio dando a ela o melhor de mim. Ela queria a vida como um náufrago quer respirar. Queria gozar com uma fome que parecia brotar de suas entranhas. E eu lhe mostrei o caminho, primeiro com beijos suaves nos seus olhos profundos, descendo ao seu busto gostoso, com a ponta da língua até sugá-la em essência carnal e úmida. Enquanto ela se contorcia em espasmos. Depois a penetrei docemente enquanto ela gemia de medo e desejo até chegarmos juntos lá, naquele ponto extremo em que as consciências dissolvem, em que o desespero é transmutado em paz.
Após uma noite de sono profundo acordo, e Camila já foi embora. Levanto e me olho no espelho: a mesma cara horrível de Gollum careca e sem dentes. Tomo meu banho e o relógio avisa que já deveria estar no trabalho, Camila deixou o telefone em cima da estante. Enfio no bolso e me visto. As ruas e sua loucura me recebem de braços abertos. Mas eu estava bem. Forte e firme, um homem completo. Não apenas um a mente agitada que lê Nietsche, Stiner e Heidegger. Não apenas um escritor fracassado e um ressentido. Não, eu sou um homem e louvado seja o evangelho de Reich! Abram alas para o homem completo que pensa coisas profundas e sabe fazer uma mulher gozar! Mas o ônibus lotado me deixou na porta do trabalho, eu desci, vesti o uniforme e entrei no supermercado para cortar minha cota de peças de carne. O trabalho exaustivo ao lado de pessoas sem alma, com pele de madeira e vontades de chumbo. Paradas, domadas com todo repertório de valores estabelecido. A segunda feira acaba e volto para casa. Apesar do cansaço ainda sinto o gosto de Camila em minha boca, sua tristeza doce, como eu gostaria de tê-la agora esperando em minha casa para beijá-la sorrindo na chegada e dizer: - Ah, meu amor é tão difícil. E ela talvez fosse sorrir e dizer: - Eu entendo. E eu acho que ela ia entender.
Abro a aporta do apartamento minúsculo de quarto e sala. O cheiro da comida podre me invade as narinas. Abro a janela de dois palmos voltada para uma favela e penso no meu próximo estágio. Tiro as roupas jogando cada peça no chão e entro no chuveiro. Cada gota de água uma bênção, uma redenção, a única a qual tenho direito. Depois de enxuto e vestido sento na esburacada poltrona e ligo o rádio, música popular da Bahia: lixo. Pego o telefone e ligo para o número que a Camila me deu. O aparelho do outro lado da linha chama insistente e ninguém o atende. O noticiário elenca o seu menu de atrocidades, fraudes e corrupção comuns em nosso país , e mo meio da torrente de miséria uma me chama a atenção.
- Mulher tenta o suicídio jogando-se de um prédio, seu nome: Camila Alonzo. Meu corpo sacode como se tivesse levado um soco. Pego minha carteira e saio em disparada pelas ruas, com uma frase me ecoando nos ouvidos: Ela sabia.
Eu atravesso as ruas movimentadas como um louco. Os prédios parecem insanos caixotes de concreto para o armazenamento de pessoas. Chego ao ponto de ônibus, ele nunca demorou tanto e eu penso em tragédias, hecatombes e armagedons para aliviar minha angústia espalhando a miséria sobre o mundo. Chega o coletivo. Quase não me importo com a cara das pessoas. A viagem atravessa o péssimo trânsito da capital. Uma mulher reclama do marido e um sujeito musculoso conta vantagens ao amigo. Mas afinal que tecido de acaso, que golpe de foice sua mão manipulou desta vez? Qual é sua trama, sua piada sinistra, para extrair de minhas entranhas uma iluminação que não quero? O ônibus chega ao centro e desço alucinado abrindo caminho entre as massas. Camila, Camila o que você fez? Escolheu a saída mais curta? Optou pelo gesto violento e sem barganhas? Eu sem fé, louco e cético, acomodado e preguiçoso faço aos poucos o que você fez de uma só vez. A aposta de Pascal, um lance muito alto, Camila nós não sabemos e o meu sacrossanto egoísmo gostaria de te ver sofrendo ao meu lado, de pé. Sim, de pé, mas para quê? Para a rotina de todo dia? Para a trepada garantida? Para a obrigação da trepada? E o medo da traição? Não Camila, você poderia ter achado um caminho, todos nós podemos.
Atravesso duas praças do centro e seus aposentados sentados no banco a jogar dominó ou distribuir a fé em receitas. Passo correndo e alguns me apontam, a vida e o telejornal se tocam. Chego ao imenso edifício onde Camila está internada. Suas janelas negras de vidro se perdem nos céus. Lembranças de minha infância doente nos hospitais, a solidão imensa do quarto, o cheiro de formol nas coisas e suas enfermeiras sem afeto para meu coração de menino órfão e triste. Depois, teve meu avô e suas últimas crises, seus internamentos em que não se lembrava meu nome. Nossa alma se desfaz em pó no decorrer do caminho, e no final resta o corpo uma caixa cheia de leite apodrecido.
Entro na entrada e o gorila da segurança me aponta a recepção. A garota que me atende já não sente mais dor. Sua face dura anuncia a morte de tudo que poderia ter sido uma vida. - Camila Alonzo, qual o quarto – Eu pergunto. E o fantasma do que poderia ter sido alguém diz o número do quarto, desconfiada. Atiro-me na direção do elevador, mas na espera da cabine espelhada eu me pergunto: mas de que adianta? Em que isso vai ajudar Camila ou a mim? Talvez só para macular a memória do anjo divino em meus braços? Para estrangular a beleza do que é breve com as garras famintas do apego? O elevador chega e me leva em poucos minutos até o fatídico andar. Atravesso os corredores até chegar à porta da UTI onde Camila repousa entre tubos, agulhas e monitores. Como um pássaro sendo engolido por uma maquinaria demente. Uma mulher alta e esbelta de face encovada encontra-se de pé ao seu lado. O selo da moral ressentida, da morte da alma e da mesquinhez talhado em sua face maquiada, um ser decaído de si, um fantasma e uma paródia da vida, essa é sua mãe Camila? Ela também conspirou para sua loucura? A mulher adornada estava chorando, um choro sem fé e formal, ela me olhou com olhar assustado e odioso. Eu dei as costas e me afastei da porta. Desci as longas escadas com o peso imenso de um fato nas mãos. Olhei para o céu de fim de tarde e ele me pareceu vazio e estúpido. Como quase tudo que eu via pelo caminho, apenas minha sinceridade parecia clara, minha residência na terra me dava um norte, mas, eu me sentia vazio e cansado como quem cai em um precipício infinito ao imaginar que abraça a aurora. Camila agora estava voando em um céu iluminado e sem culpa, obrigado querida, eu estarei com você.
quarta-feira, janeiro 09, 2008
A laranja caida e os espinhos do bosque.
Há um período da minha vida do qual me lembro vagamente. Acho que foi entre os catorze ou quinze anos. Nessa época eu morava no subúrbio com minha mãe, suas crises nervosas periódicas e meus dois irmãos menores. Habitávamos um pequeno barraco de madeira próximo à maré e o mau cheiro do lixo misturado aos peixes mortos da baía dos tainheiros era constante. Vivíamos da pensão que minha mãe recebia e do dinheiro que meu padrasto não gastava com bebida. E eu muitas vezes não tinha o que comer, pois o pouco alimento era reservado aos filhos do marido de minha mãe que geralmente estava dormindo sob o efeito dos tranqüilizantes.
Vivendo nessas condições, com roupas rasgadas e sem as condições mínimas de dignidade tive que começar a trabalhar muito cedo. Primeiro, ensacando mercadorias por trocados e depois recebendo meio salário mínimo de um ganancioso protestante dono de uma mercearia.
Pensando agora naquela época acho que até não foi tudo tão ruim, ao contrário do que se pode imaginar. Eu estava envolvido por uma atmosfera de doce conformismo e glorificação romântica da pobreza, a ponto de nem chegar a me dar conta do quanto eu estava atolado na lama. Quando comecei a trabalhar essa minha “inconsciência” foi particularmente problemática. Eu não me dava conta do quanto era perigoso viver, e do quanto às coisas poderiam ser difíceis para quem não se cuidava. A conseqüência direta disso é que eu vivia chegando atrasado nos bicos que arrumava, não escovava os dentes e raramente penteava os cabelos. Eu nem era punk ou revoltado com qualquer coisa, apenas não tinha noção de nada. Era distraído, poeta, covarde cheio de auto-piedade, consequentemente uma vítima perfeita para a exploração e satisfação das tendências sádicas dos patrões. Lembro bem da maneira como eu era constantemente torturado pelo protestante que me deu o primeiro trabalho em sua mercearia. Ele me obrigava a estar na porta do mercado às seis horas da manhã todo dia, mas, nunca chegava lá antes das oito horas. Todavia, caso eu não chegasse no horário solicitado sempre tinha um olheiro, algum outro comerciante para me denunciar. E então eu sofria com o chicote da ameaça de desemprego. Passei boa parte da minha vida com pesadelos nos quais era demitido e a realidade nunca deixou de corresponder aos meus temores.
Enquanto eu trabalhava minha vida se resumia a trabalhar, fazer contas das despesas e chegar em casa exausto e dormir. E quando estava desempregado ( e eu estive assim a maior parte do tempo) vagabundeava jogava vôlei na rua e recebia chingamentos de minha mãe. Uma vez depois de descarregar várias caixas com mercadorias cheguei em casa tão exausto que um ladrão pulou a janela do barraco levou o botijão de gás, um liquidificador, meu único par de sapatos, todo dinheiro de minha carteira, e eu não acordei. Só me dei conta do furto quando fui pagar meu almoço. Nessa época eu dormia em um outro barraco em uma invasão ainda mais sórdida que aquela que vivia minha mãe; Ela tinha trocado o barraco de madeira por uma geladeira usada e umas panelas de alumínio e eu dormia lá para tomar conta.
As ruas do subúrbio tinham entradas e vielas que nunca deixaram de me dar calafrios. Eram comuns os boatos sobre assassinatos, desovas, assaltos e espancamentos. Um dia, quando retornava do trabalho no mercado do protestante escroto vi acidentalmente um grupo de homens saindo de um beco escondendo suas pistolas. Tentei me fazer de desentendido e seguir em frente, mas um deles me chamou:
- Hei seu “corujão” – era a gíria usada para denominar os alcagüetes – Ta olhando o quê?
Continuei andando, achando que a estratégia ainda poderia funcionar, foi quando o grito do outro ecoou. – Parado aí fila- da -puta ou te meto uma bala.
Senti o corpo inteiro gelar e pensei: esta é a hora. Eu era só um moleque de seus quinze anos e nunca tinha sido tratado daquela maneira. Acho que ainda hoje ouço aquele grito ecoando do fundo da escuridão meus sonhos.
- Estava olhando o quê elemento – indagou um dos três homens, me puxando pela gola da camisa enquanto aplicava um tapa seco em meu pescoço – uma lágrima tremeu em meu canto de olho enquanto eu tentava desajeitadamente desfazer o mal- entendido.
- Veja só cara, eu “tava” só passando e...
É verdade que na época era comum para um rapaz de minha idade usar gírias, mas naquela situação isso foi uma completa estupidez, provocada pela minha inconsciência e ingenuidade já citada.
- “ Cara”? Você me chamou de cara?
O do bigode que me tinha agarrado pela gola aplicou outro tapa, mais forte e mais seco, enquanto puxava a pistola coma outra mão e a encostava em minha nuca. Senti o frio do metal colado na cabeça como uma agulha que injetava o desespero diretamente para dentro de minha alma.
- Me deixa ver o braço – um outro aparentemente mais calmo me tirou da mira do bigodudo furioso e esticou meu braço – bom, drogas injetáveis você não usa, trabalha?
- Sim senhor eu trabalho
- Tem como provar? – vasculhei os bolsos da imunda calça jeans até encontrar o amassado contracheque que o sujeito ergueu na luz enquanto os outros dois olhavam furiosos e de arma na mão.
- É você não parece um marginal, mas tem que evitar andar nesses lugares a essa hora da noite – eu não respondi nada. Ele me deu uma tapinha amistosa, em um tom ao mesmo tempo de conciliação e ameaça e eu me arrastei para o barraco de minha mãe atônito. Não argumentei nem contei a ninguém sobre o que tinha acontecido. Não havia o que dizer. Essa foi a minha primeira lição de mundo, naquele dia eu comecei a acordar para uma parte da vida diante da qual a minha atitude sempre permaneceu a mesma: Silêncio e assombro.
Vivendo nessas condições, com roupas rasgadas e sem as condições mínimas de dignidade tive que começar a trabalhar muito cedo. Primeiro, ensacando mercadorias por trocados e depois recebendo meio salário mínimo de um ganancioso protestante dono de uma mercearia.
Pensando agora naquela época acho que até não foi tudo tão ruim, ao contrário do que se pode imaginar. Eu estava envolvido por uma atmosfera de doce conformismo e glorificação romântica da pobreza, a ponto de nem chegar a me dar conta do quanto eu estava atolado na lama. Quando comecei a trabalhar essa minha “inconsciência” foi particularmente problemática. Eu não me dava conta do quanto era perigoso viver, e do quanto às coisas poderiam ser difíceis para quem não se cuidava. A conseqüência direta disso é que eu vivia chegando atrasado nos bicos que arrumava, não escovava os dentes e raramente penteava os cabelos. Eu nem era punk ou revoltado com qualquer coisa, apenas não tinha noção de nada. Era distraído, poeta, covarde cheio de auto-piedade, consequentemente uma vítima perfeita para a exploração e satisfação das tendências sádicas dos patrões. Lembro bem da maneira como eu era constantemente torturado pelo protestante que me deu o primeiro trabalho em sua mercearia. Ele me obrigava a estar na porta do mercado às seis horas da manhã todo dia, mas, nunca chegava lá antes das oito horas. Todavia, caso eu não chegasse no horário solicitado sempre tinha um olheiro, algum outro comerciante para me denunciar. E então eu sofria com o chicote da ameaça de desemprego. Passei boa parte da minha vida com pesadelos nos quais era demitido e a realidade nunca deixou de corresponder aos meus temores.
Enquanto eu trabalhava minha vida se resumia a trabalhar, fazer contas das despesas e chegar em casa exausto e dormir. E quando estava desempregado ( e eu estive assim a maior parte do tempo) vagabundeava jogava vôlei na rua e recebia chingamentos de minha mãe. Uma vez depois de descarregar várias caixas com mercadorias cheguei em casa tão exausto que um ladrão pulou a janela do barraco levou o botijão de gás, um liquidificador, meu único par de sapatos, todo dinheiro de minha carteira, e eu não acordei. Só me dei conta do furto quando fui pagar meu almoço. Nessa época eu dormia em um outro barraco em uma invasão ainda mais sórdida que aquela que vivia minha mãe; Ela tinha trocado o barraco de madeira por uma geladeira usada e umas panelas de alumínio e eu dormia lá para tomar conta.
As ruas do subúrbio tinham entradas e vielas que nunca deixaram de me dar calafrios. Eram comuns os boatos sobre assassinatos, desovas, assaltos e espancamentos. Um dia, quando retornava do trabalho no mercado do protestante escroto vi acidentalmente um grupo de homens saindo de um beco escondendo suas pistolas. Tentei me fazer de desentendido e seguir em frente, mas um deles me chamou:
- Hei seu “corujão” – era a gíria usada para denominar os alcagüetes – Ta olhando o quê?
Continuei andando, achando que a estratégia ainda poderia funcionar, foi quando o grito do outro ecoou. – Parado aí fila- da -puta ou te meto uma bala.
Senti o corpo inteiro gelar e pensei: esta é a hora. Eu era só um moleque de seus quinze anos e nunca tinha sido tratado daquela maneira. Acho que ainda hoje ouço aquele grito ecoando do fundo da escuridão meus sonhos.
- Estava olhando o quê elemento – indagou um dos três homens, me puxando pela gola da camisa enquanto aplicava um tapa seco em meu pescoço – uma lágrima tremeu em meu canto de olho enquanto eu tentava desajeitadamente desfazer o mal- entendido.
- Veja só cara, eu “tava” só passando e...
É verdade que na época era comum para um rapaz de minha idade usar gírias, mas naquela situação isso foi uma completa estupidez, provocada pela minha inconsciência e ingenuidade já citada.
- “ Cara”? Você me chamou de cara?
O do bigode que me tinha agarrado pela gola aplicou outro tapa, mais forte e mais seco, enquanto puxava a pistola coma outra mão e a encostava em minha nuca. Senti o frio do metal colado na cabeça como uma agulha que injetava o desespero diretamente para dentro de minha alma.
- Me deixa ver o braço – um outro aparentemente mais calmo me tirou da mira do bigodudo furioso e esticou meu braço – bom, drogas injetáveis você não usa, trabalha?
- Sim senhor eu trabalho
- Tem como provar? – vasculhei os bolsos da imunda calça jeans até encontrar o amassado contracheque que o sujeito ergueu na luz enquanto os outros dois olhavam furiosos e de arma na mão.
- É você não parece um marginal, mas tem que evitar andar nesses lugares a essa hora da noite – eu não respondi nada. Ele me deu uma tapinha amistosa, em um tom ao mesmo tempo de conciliação e ameaça e eu me arrastei para o barraco de minha mãe atônito. Não argumentei nem contei a ninguém sobre o que tinha acontecido. Não havia o que dizer. Essa foi a minha primeira lição de mundo, naquele dia eu comecei a acordar para uma parte da vida diante da qual a minha atitude sempre permaneceu a mesma: Silêncio e assombro.
quinta-feira, janeiro 03, 2008
Na vida dura
no caminho escuro,
ainda assim voçê vai conseguir.
Se mantiver os ombros em linha,
se guardar a lembrança das horas,
se cultivar as rosas do afeto
e se mantiversereno em meio a tempestade.
È o maximo que se pode fazer e também
é o melhor.
melhor que se perder em sonhos loucos
e que definhar em uma vida mofada
mensurada por notas fiscais.
Na vida dura,
no caminho escuro,
no apego a si
voçê conseguirá irmão
voçê conseguirá.
pois as flores que merecem viver
rasgam o asfalto a procura de luz.
no caminho escuro,
ainda assim voçê vai conseguir.
Se mantiver os ombros em linha,
se guardar a lembrança das horas,
se cultivar as rosas do afeto
e se mantiversereno em meio a tempestade.
È o maximo que se pode fazer e também
é o melhor.
melhor que se perder em sonhos loucos
e que definhar em uma vida mofada
mensurada por notas fiscais.
Na vida dura,
no caminho escuro,
no apego a si
voçê conseguirá irmão
voçê conseguirá.
pois as flores que merecem viver
rasgam o asfalto a procura de luz.
quarta-feira, janeiro 02, 2008
Brio
Um homem pode cair,
mas não comungar com a lama.
um homem pode chorar
mas não fazer do choro um pedido.
Um homem pode passar fome,
vender a alma,
comer da própria merda
e em seguida olhar o mar
e pensar que está tudo bem.
mas um homem não pode
se arrepender e maldizer os seus gestos
nem estabelecer os seus passos
na ignorância absoluta do fim
sem perder o brio e a persistência
que o sustentam e mantêm,
enquanto cavalga o dorso da vida
e se alimenta da própria gordura.
mas não comungar com a lama.
um homem pode chorar
mas não fazer do choro um pedido.
Um homem pode passar fome,
vender a alma,
comer da própria merda
e em seguida olhar o mar
e pensar que está tudo bem.
mas um homem não pode
se arrepender e maldizer os seus gestos
nem estabelecer os seus passos
na ignorância absoluta do fim
sem perder o brio e a persistência
que o sustentam e mantêm,
enquanto cavalga o dorso da vida
e se alimenta da própria gordura.
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