Há um período da minha vida do qual me lembro vagamente. Acho que foi entre os catorze ou quinze anos. Nessa época eu morava no subúrbio com minha mãe, suas crises nervosas periódicas e meus dois irmãos menores. Habitávamos um pequeno barraco de madeira próximo à maré e o mau cheiro do lixo misturado aos peixes mortos da baía dos tainheiros era constante. Vivíamos da pensão que minha mãe recebia e do dinheiro que meu padrasto não gastava com bebida. E eu muitas vezes não tinha o que comer, pois o pouco alimento era reservado aos filhos do marido de minha mãe que geralmente estava dormindo sob o efeito dos tranqüilizantes.
Vivendo nessas condições, com roupas rasgadas e sem as condições mínimas de dignidade tive que começar a trabalhar muito cedo. Primeiro, ensacando mercadorias por trocados e depois recebendo meio salário mínimo de um ganancioso protestante dono de uma mercearia.
Pensando agora naquela época acho que até não foi tudo tão ruim, ao contrário do que se pode imaginar. Eu estava envolvido por uma atmosfera de doce conformismo e glorificação romântica da pobreza, a ponto de nem chegar a me dar conta do quanto eu estava atolado na lama. Quando comecei a trabalhar essa minha “inconsciência” foi particularmente problemática. Eu não me dava conta do quanto era perigoso viver, e do quanto às coisas poderiam ser difíceis para quem não se cuidava. A conseqüência direta disso é que eu vivia chegando atrasado nos bicos que arrumava, não escovava os dentes e raramente penteava os cabelos. Eu nem era punk ou revoltado com qualquer coisa, apenas não tinha noção de nada. Era distraído, poeta, covarde cheio de auto-piedade, consequentemente uma vítima perfeita para a exploração e satisfação das tendências sádicas dos patrões. Lembro bem da maneira como eu era constantemente torturado pelo protestante que me deu o primeiro trabalho em sua mercearia. Ele me obrigava a estar na porta do mercado às seis horas da manhã todo dia, mas, nunca chegava lá antes das oito horas. Todavia, caso eu não chegasse no horário solicitado sempre tinha um olheiro, algum outro comerciante para me denunciar. E então eu sofria com o chicote da ameaça de desemprego. Passei boa parte da minha vida com pesadelos nos quais era demitido e a realidade nunca deixou de corresponder aos meus temores.
Enquanto eu trabalhava minha vida se resumia a trabalhar, fazer contas das despesas e chegar em casa exausto e dormir. E quando estava desempregado ( e eu estive assim a maior parte do tempo) vagabundeava jogava vôlei na rua e recebia chingamentos de minha mãe. Uma vez depois de descarregar várias caixas com mercadorias cheguei em casa tão exausto que um ladrão pulou a janela do barraco levou o botijão de gás, um liquidificador, meu único par de sapatos, todo dinheiro de minha carteira, e eu não acordei. Só me dei conta do furto quando fui pagar meu almoço. Nessa época eu dormia em um outro barraco em uma invasão ainda mais sórdida que aquela que vivia minha mãe; Ela tinha trocado o barraco de madeira por uma geladeira usada e umas panelas de alumínio e eu dormia lá para tomar conta.
As ruas do subúrbio tinham entradas e vielas que nunca deixaram de me dar calafrios. Eram comuns os boatos sobre assassinatos, desovas, assaltos e espancamentos. Um dia, quando retornava do trabalho no mercado do protestante escroto vi acidentalmente um grupo de homens saindo de um beco escondendo suas pistolas. Tentei me fazer de desentendido e seguir em frente, mas um deles me chamou:
- Hei seu “corujão” – era a gíria usada para denominar os alcagüetes – Ta olhando o quê?
Continuei andando, achando que a estratégia ainda poderia funcionar, foi quando o grito do outro ecoou. – Parado aí fila- da -puta ou te meto uma bala.
Senti o corpo inteiro gelar e pensei: esta é a hora. Eu era só um moleque de seus quinze anos e nunca tinha sido tratado daquela maneira. Acho que ainda hoje ouço aquele grito ecoando do fundo da escuridão meus sonhos.
- Estava olhando o quê elemento – indagou um dos três homens, me puxando pela gola da camisa enquanto aplicava um tapa seco em meu pescoço – uma lágrima tremeu em meu canto de olho enquanto eu tentava desajeitadamente desfazer o mal- entendido.
- Veja só cara, eu “tava” só passando e...
É verdade que na época era comum para um rapaz de minha idade usar gírias, mas naquela situação isso foi uma completa estupidez, provocada pela minha inconsciência e ingenuidade já citada.
- “ Cara”? Você me chamou de cara?
O do bigode que me tinha agarrado pela gola aplicou outro tapa, mais forte e mais seco, enquanto puxava a pistola coma outra mão e a encostava em minha nuca. Senti o frio do metal colado na cabeça como uma agulha que injetava o desespero diretamente para dentro de minha alma.
- Me deixa ver o braço – um outro aparentemente mais calmo me tirou da mira do bigodudo furioso e esticou meu braço – bom, drogas injetáveis você não usa, trabalha?
- Sim senhor eu trabalho
- Tem como provar? – vasculhei os bolsos da imunda calça jeans até encontrar o amassado contracheque que o sujeito ergueu na luz enquanto os outros dois olhavam furiosos e de arma na mão.
- É você não parece um marginal, mas tem que evitar andar nesses lugares a essa hora da noite – eu não respondi nada. Ele me deu uma tapinha amistosa, em um tom ao mesmo tempo de conciliação e ameaça e eu me arrastei para o barraco de minha mãe atônito. Não argumentei nem contei a ninguém sobre o que tinha acontecido. Não havia o que dizer. Essa foi a minha primeira lição de mundo, naquele dia eu comecei a acordar para uma parte da vida diante da qual a minha atitude sempre permaneceu a mesma: Silêncio e assombro.
Vivendo nessas condições, com roupas rasgadas e sem as condições mínimas de dignidade tive que começar a trabalhar muito cedo. Primeiro, ensacando mercadorias por trocados e depois recebendo meio salário mínimo de um ganancioso protestante dono de uma mercearia.
Pensando agora naquela época acho que até não foi tudo tão ruim, ao contrário do que se pode imaginar. Eu estava envolvido por uma atmosfera de doce conformismo e glorificação romântica da pobreza, a ponto de nem chegar a me dar conta do quanto eu estava atolado na lama. Quando comecei a trabalhar essa minha “inconsciência” foi particularmente problemática. Eu não me dava conta do quanto era perigoso viver, e do quanto às coisas poderiam ser difíceis para quem não se cuidava. A conseqüência direta disso é que eu vivia chegando atrasado nos bicos que arrumava, não escovava os dentes e raramente penteava os cabelos. Eu nem era punk ou revoltado com qualquer coisa, apenas não tinha noção de nada. Era distraído, poeta, covarde cheio de auto-piedade, consequentemente uma vítima perfeita para a exploração e satisfação das tendências sádicas dos patrões. Lembro bem da maneira como eu era constantemente torturado pelo protestante que me deu o primeiro trabalho em sua mercearia. Ele me obrigava a estar na porta do mercado às seis horas da manhã todo dia, mas, nunca chegava lá antes das oito horas. Todavia, caso eu não chegasse no horário solicitado sempre tinha um olheiro, algum outro comerciante para me denunciar. E então eu sofria com o chicote da ameaça de desemprego. Passei boa parte da minha vida com pesadelos nos quais era demitido e a realidade nunca deixou de corresponder aos meus temores.
Enquanto eu trabalhava minha vida se resumia a trabalhar, fazer contas das despesas e chegar em casa exausto e dormir. E quando estava desempregado ( e eu estive assim a maior parte do tempo) vagabundeava jogava vôlei na rua e recebia chingamentos de minha mãe. Uma vez depois de descarregar várias caixas com mercadorias cheguei em casa tão exausto que um ladrão pulou a janela do barraco levou o botijão de gás, um liquidificador, meu único par de sapatos, todo dinheiro de minha carteira, e eu não acordei. Só me dei conta do furto quando fui pagar meu almoço. Nessa época eu dormia em um outro barraco em uma invasão ainda mais sórdida que aquela que vivia minha mãe; Ela tinha trocado o barraco de madeira por uma geladeira usada e umas panelas de alumínio e eu dormia lá para tomar conta.
As ruas do subúrbio tinham entradas e vielas que nunca deixaram de me dar calafrios. Eram comuns os boatos sobre assassinatos, desovas, assaltos e espancamentos. Um dia, quando retornava do trabalho no mercado do protestante escroto vi acidentalmente um grupo de homens saindo de um beco escondendo suas pistolas. Tentei me fazer de desentendido e seguir em frente, mas um deles me chamou:
- Hei seu “corujão” – era a gíria usada para denominar os alcagüetes – Ta olhando o quê?
Continuei andando, achando que a estratégia ainda poderia funcionar, foi quando o grito do outro ecoou. – Parado aí fila- da -puta ou te meto uma bala.
Senti o corpo inteiro gelar e pensei: esta é a hora. Eu era só um moleque de seus quinze anos e nunca tinha sido tratado daquela maneira. Acho que ainda hoje ouço aquele grito ecoando do fundo da escuridão meus sonhos.
- Estava olhando o quê elemento – indagou um dos três homens, me puxando pela gola da camisa enquanto aplicava um tapa seco em meu pescoço – uma lágrima tremeu em meu canto de olho enquanto eu tentava desajeitadamente desfazer o mal- entendido.
- Veja só cara, eu “tava” só passando e...
É verdade que na época era comum para um rapaz de minha idade usar gírias, mas naquela situação isso foi uma completa estupidez, provocada pela minha inconsciência e ingenuidade já citada.
- “ Cara”? Você me chamou de cara?
O do bigode que me tinha agarrado pela gola aplicou outro tapa, mais forte e mais seco, enquanto puxava a pistola coma outra mão e a encostava em minha nuca. Senti o frio do metal colado na cabeça como uma agulha que injetava o desespero diretamente para dentro de minha alma.
- Me deixa ver o braço – um outro aparentemente mais calmo me tirou da mira do bigodudo furioso e esticou meu braço – bom, drogas injetáveis você não usa, trabalha?
- Sim senhor eu trabalho
- Tem como provar? – vasculhei os bolsos da imunda calça jeans até encontrar o amassado contracheque que o sujeito ergueu na luz enquanto os outros dois olhavam furiosos e de arma na mão.
- É você não parece um marginal, mas tem que evitar andar nesses lugares a essa hora da noite – eu não respondi nada. Ele me deu uma tapinha amistosa, em um tom ao mesmo tempo de conciliação e ameaça e eu me arrastei para o barraco de minha mãe atônito. Não argumentei nem contei a ninguém sobre o que tinha acontecido. Não havia o que dizer. Essa foi a minha primeira lição de mundo, naquele dia eu comecei a acordar para uma parte da vida diante da qual a minha atitude sempre permaneceu a mesma: Silêncio e assombro.
Um comentário:
olha comentar esses contos p/ mim é extremamente torturoso cara , sim pq vc joga a bomba em minha direção e fica de longe observando que porra é que vai dar , man eu sou bem suspeito p/ falar ou até mesmo comentar seus contos , vc sabe qu eles sempre deixam algo geralmente algo que faz rever um monte de coisa na cabeça (kakaak)
rapz os contos de Juan, ( é assim que prefiro chamar) se confudem com a realidade, muitas vezes não só a do seu escritos , ou tradutor ou interlocutor masi as vezes , as historias dos ( filhos de Caim)
as h]itorias contam cosas sobre nós, seres que sonham em um dia poder dormir quem sabe uma noite na masi sincera paz cosigo
enzo de marco
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