quarta-feira, fevereiro 23, 2011

domingo, fevereiro 20, 2011

Matemática

Então não havia muita coisa a ser feita. Eu tinha mesmo que me juntar a aquele grupo de sujeitos toscos vestir a mesma farda, cuja cor azul se perdia sob as manchas de graxa, e encarar o batente. O pai de uma namorada havia conseguido o serviço pra mim, depois de eu ser demitido do trabalho com ofice boy na loja de fardamento onde fui torturado psicologicamente de incontáveis maneiras. Não era muito asseado. Não escovava os dentes também. Minha educação familiar consistiu de um conjunto fragmentado de máximas morais, baixa auto-estima e solidão. O encontro com a violência característica do mercado de trabalho foi uma coisa realmente desagradável. Todo mundo sabia de coisas óbvias que no horizonte da minha consciência sonhadora e entorpecida sequer tinham relevância. O resultado era previsível. Trabalhei dois anos de oficie Boy e fui demitido sob circunstâncias surreais que irei contar um outro dia. Mas aquele trabalho que eu ia começar era diferente. Nada de escritório, ar condicionado e as pessoas comentando o meu cheiro. Nada das fofocas e intrigas estúpidas dos funcionários a cata de alguma promoção. Nada de documentos que eu cansava de perder e me desesperar em noites de insônia. Não, ali a selva apresentava uma outra face. Eu estava sendo contratado por uma empresa terceirizada para desempenhar a importantíssima função de auxiliar de operações. Na prática o serviço consistia em limpar os filtros de óleo de mamona, retângulos sustentados sob quatro pernas, como mesas sem tampo, no meio dos quais dependuravam-se placas também de aço de 50 a 60 kg cada uma. As placas eram perfuradas no alto e cobertas de uma lona, sob a perfuração o oléo quente de mamona jorrava misturado ao pó de carvão e ao agente filtrante. Elas precisavam estar bem ajustadas umas as outras, ou o óleo quente jorraria sobre nós. Para isso havia uma manivela no final de cada retângulo que apenas três ajudantes juntos conseguiam fazer girar. Após apertadas as placas o óleo jorrava e quando terminava nós as afrouxávamos e nos colocávamos a raspar das placas quentes a borra de carvão e agente filtrante que o óleo havia deixado. A borra caia em um tacho situado abaixo do retângulo, que depois esvaziávamos com um carro de mão. O processo era repetido todo dia em turnos de 12 horas.
O repouso de uma hora não era suficiente para dormir, e as vezes nós conseguíamos arquitetar estratégias para burlar a vigilância canina do encarregado, um sujeito com o curioso nome de Prospício. Vi muitos sujeitos pedirem demissão após o 1 dia de trabalho. Caras durões, mas que tinham pelo menos uma mãe ou um pai para garantir um prato de comida. Eu fiquei um ano inteiro. O óleo era utilizado, entre outra coisas, para produzir detergentes. Então havia muita soda caustica esparramada por todo local. Usávamos essa coisa para lavar os banheiros da fabrica. Algo tão imundo que gelava a espinha só de olhar. As feridas advindas do uso da substância eram comuns. Uma vez fiquei o mês inteiro sem poder calçar sapatos.
O dinheiro que eu recebia era pouco, mais com as horas extras somadas dava uma grana maior que qualquer outro serviço que tivesse feito. Mas os pais de minha namorada achavam que tinha que contribuir com alguma grana para despesa dela, uma vez que estávamos transando e ela lavava minhas roupas. Um rapaz normal teria uma mãe para fazer isso, como não era o caso, não sobrava muita coisa. Um dia, ao sair da casa dessa garota, eu fui abordado por um assaltante. Eu estava naquele momento com os poucos trocados que sobravam após pagar a divididas e dar a despesa na casa dela. Ainda faltava pagar o aluguel do quarto e sala em que eu dormia e comprar alguns quilos de arroz e frango para comer o restante do mês.  O sujeito foi violento na abordagem, mas não mostrou a arma. Exibia apenas um volume pontiagudo sob a camisa que parecia o cano de um revolver.
-Me passa a carteira seu filho da puta, ou lhe estouro os miolos.
Já ia tirando a carteira para entregar, mas exitei. Afinal, o que haveria a perder? Tudo se passou diante de meus olhos em um flash e a decisão me pareceu óbvia, comecei a correr. Por sorte ele não estava armado pois não ouvi os estampidos dos disparos. Até hoje, quando lembro, não acho que foi uma loucura. Uma matemática simples e uma das coisas mais racionais que já fiz. Ainda hoje, dada as circunstâncias, me parece que eu agi com bom senso. Na época suicídio não passava pela minha cabeça, minha educação religiosa  havia selado essa rota de fuga, mas isso não quer dizer que eu achasse que a vida era um bem supremo. Simplesmente me pareceu que qualquer coisa seria melhor do trabalhar naquele inferno, sem qualquer perspectiva de futuro,  e ainda não poder pagar minha própria refeição. Foi um cálculo perfeito. Duvido que qualquer pessoa com bom senso pense o contrário.

quinta-feira, fevereiro 03, 2011

Familia

Viver um dia por vez, eles dizem pra mim,

Enquanto as laranjas caindo não são percebidas

e apenas um ou dois gestos evitam o pior.

No quintal solitário de um sitio sem sonhos

Na vida infantil de um menino sem pai

Nos ultimos dias de um velho sem

chance.

Nada a pedir, quando ninguém é culpado,

Nem a lamentar quando a morte decide

E no entanto essa cratera calada supura

Todos os dias sem redenção

nem remédio.

Pegue as roupas, se puder levantar-se,

Siga em frente sem tantos lamentos

Porque depois de você outros irão pela estrada.

Outras faces marcadas tentando aprender a sorrir.

São essas as coisas que giram , são essas as arvóres

De onde despencam o meu pessimismo,

Como despencaram meus irmãos pela ribanceira

Do acaso

E até hoje caem sem se dar conta disso.

Nenhum almoço tranquilo para nivelar os dilemas,

Nada parecido com a ligação das pessoas

Apenas memórias sem calendário, nomes sem importância,

Sem noite feliz, maternidade, namoro escondido, bolas de sabão

Beijo de boa noite e todas as coisas agora tão tolas

Que deixariam de ser para alguém que não é.

Ficou esse estar, aos 37, pagando as contas e tentando

seguir

E a morte sentada na cabeceira da mesa

a sorrir.