domingo, outubro 20, 2013

Pelo Canto dos olhos



Sair de casa, a partir de uma certa época, tornou-se um grande desconforto para mim. Não gostava de ver o rosto das pessoas na rua; pior ainda, detestava ter que, incidentalmente, falar com elas. Não sei explicar muito bem o motivo dessa minha aversão. Sempre fui muito falador, relativamente sociável, e até certo ponto muito bem humorado. Mas de uns tempos pra cá, não sei precisar quando, eu passei a evitar sistematicamente as pessoas e ficava furioso toda vez que um compromisso familiar, os cuidados com a saúde ou o qualquer outra ocupação me obrigava a deixa minha caverna. Eu, e mesmo assim a contragosto, achava que só deveria sair de casa para ir trabalhar. 
Na época em que vivi a estranha experiência que vou agora relatar eu morava em um velho edifício inacabado e com escadas assustadoras próximo ao centro de Salvador. O senhorio do prédio era um ex-policial civil que tinha uma irmã louca que vivia gritando pelos corredores. Gritava a plenos pulmões coisas desconexas sobre Deus  ter fodido com a vida dela, sobre Jesus ser uma cara legal, sobre os choques que levou na cabeça e muitas outras coisas bem menos razoáveis que essas das quais me lembro.  Me lembro também que naquele dia ela foi a primeira pessoa que tratei de evitar ao descer as escadas. Eu tinha que ir ao proctologista para que ele me examinasse as malditas hemorroidas. É, essas coisas me impediam de ficar sentado muito tempo e atrapalhavam o meu trabalho criativo. Eram como serras sendo enfiadas em meu traseiro nos dias difíceis. A saída seria a cirurgia, mas eu estava relutante em ser cortado nas partes baixas como se fosse um boneco de pano cujo enchimento tinha que ser trocado. O médico era um sujeito bacana, gostava de contar piadas machistas enquanto enfiava o dedo lá no fundo com uma mão e escrevia o diagnóstico com a outra. O escritório dele ficava na periferia e, como não tenho carro, peguei o ônibus no terminal central e me sentei em um dos bancos mais ao fundo como meus fones de ouvido para evitar que o “lixo local”, como dizia Nabokov, me invadisse os ouvidos.
Há dias que são estranhos e há esses outros em que enlouquecemos. Não lembro onde foi que ouvi essa frase, mas ela se ajustava perfeitamente ao que estava prestes a acontecer. Assim que sentei no banco percebi, pelo canto do olho, que o sujeito do meu lado me olhava com um sorriso um tanto estúpido na cara. Fingi não ter percebido e foquei meu olhar no vazio através da janela. Senti uma mão em meu ombro e pensei comigo “fodeu”.
- Juan Leon! Há quanto tempo!
Olhei o sujeito bem nos olhos, ainda assustado, estampei uma expressão plástica de riso amigável, como sempre faço nas situações sociais constrangedoras. O sujeito que sabia meu nome era moreno, baixinho, cabelos encaracolados  e uma barba mal-feita e pretenciosa, dessas que os estudantes de ciências-sociais costumam usar.
-Não se lembra de mim? Sou o Hernano. Trabalhamos juntos na W &A Uniformes.
Repentinamente uma torrente de lembranças reprimidas começou a jorrar do passado para minha cabeça. Lembrei do meu tempo de Continuo, das humilhações por causa das minhas roupas geralmente sujas e amassadas, da maldade fria e gratuita de D. Norma, D. Carmen e os outros chefes, todos muitos cristãos e benevolentes para quem não os conhecia, mas verdadeiros monstros de crueldades para os rapazes pobres que vinham vender sua mão obra a preço de banana. O Hernano havia trabalhado comigo, claro, lembro dele. Era um sujeito bonito, meio estúpido, mas as garotas não pareciam se importar com isso.
-E então Juan? O que tem feito da vida?
- Um pouco de casa coisa. Vendi armas no Zimbabwe, Trafiquei cocaína na Colômbia. Tentei entrar com revistas pornô no Irã, fui chicoteado, mas me liberaram depois que eu jurei que era fã do Bin Laden. E você?
-Irônico como sempre, hein sujeito – detestava quando ele me chamava de “sujeito” – Eu continuo na W & A. Casei com a Norma.
Por aquela eu não esperava. Ele havia se casado com a sua carrasca? Um caso de “síndrome de Estocolmo”?
-Casou? Que bacana! Olha, vou descer no próximo ponto. Foi bom te ver, um abraço.
-Vai descer no próximo, ah ótimo! Eu também!
Ferrou! Agora vou ter que conversar com esses fantasmas todos novamente, pensei. Descemos no ponto seguinte e fomos conversando sobre o passado. A perspectiva dele sobre tudo aquilo que nos tinha acontecido na W&A havia se modificado bastante. Seu ponto de vista de marido da ex-patroa não possuía os mesmos matizes horrendos que eu projetava sobre aqueles dias, portanto eu me calei e deixei que ele se gabasse das conquistas. Disse que o havia encontrado no ônibus por sorte – para mim parecia azar – pois seu Honda Civic (sim, ele disse o modelo do carro caro dele) tinha ficado no mecânico. Descemos a rua em direção ao consultório do proctologista que, por azar (para mim) era também o caminho para a casa dele. A casa dele era uma imensa e branca contrução na esquina de um bairro de classe média-alta. Ele me convidou para entrar e eu recusei. Aleguei que estava atrasado para a consulta, ele reiterou o convite. No meio dessa luta a esposa dele veio descendo as escadas ao nosso encontro. Norma era uma mulher imensa, cheia de sardas e com dois e imensos olhos verdes que a faziam parecer com alguns tipos de peixes das grandes profundidades do oceano pacífico.
-Olha amor quem eu encontrei no ônibus, o Juan Leon!
- Olá Norma...
-Leon, há quanto tempo! Porque nunca mais foi nos visitar lá na loja?

Pergunta imbecil. Quem é que retorna com prazer ao abismo onde foi torturado? A conversa continuou. Da parte dos dois. Eu ficava calado ouvindo e concordando. Vez ou outra eu olhava para o relógio, tentando demonstrar que logo teria que ir embora. De repente algo estranho começou a acontecer. Notei que só a Norma falava. No meio de uma frase dela Hernano as vezes tentava entrar na conversa mas a voz dela de levantava e ele retornava ao seu silêncio sorridente. Ela falava de como organizava a vida dos dois, da igreja evangélica que frequentavam, de como ele era desleixado e de como ela resolvia tudo, o que lhe custava muito trabalho, claro. Em uma dessas longas exposições da Norma eu olhei para o Hernano pelo canto do olho e o rosto dele pareceu-me estar deformando-se, como em um dos quadros do Eduard Munch, mas quando eu o olhava de frente parecia normal (exceto por aquele sorriso amerelo e aquele par de olhos vazios). Era algo desnorteante. Comecei a questionar o meu juízo. Experimentei esfregar os olhos e respirar fundo, mas nada funcionou. A Mulher de Hernano continuava falando, engolindo suas pífias tentativas de se expressar, enquanto pelo canto dos olhos eu continuava vendo seu rosto assumir diferentes contornos, cada um mais bizarro que o outro. As vezes se parecia com uma massa de modelar acinzentada na qual pregaram dois olhos arregalados daqueles que costumavam pregar nos ursos de pelúcia de má qualidade. As vezes se parecia com alguns alienígenas de desenho animado. Aquilo tudo foi me deixando zonzo e a mesma experiência se repetiu várias vezes, sempre com um padrão diferente. Um calafrio começou a me subir a espinha. Fiquei tonto e no meio de um dos extensos sermões daquele peixe horrendo eu me despedi e saí dali olhando o relógio como desculpa. Eles ficaram parados no portão, sem entender nada. Cheguei ao consultório suando frio e quase não consegui prestar a atenção nas recomendações do médico. Saí da consulta atônito. Não era exatamente um alívio saber que existem coisas bem piores que ter seu traseiro invadido pelo dedo de um médico. 

Nenhum comentário: