sábado, dezembro 28, 2013

EU OBSERVO



Há noites que eu não posso dormir
 de remorso por tudo o que eu deixei de cometer.

As piores noites são aquelas em que só se ouve o miado dos gatos no telhado. Talvez essas noites sejam tão ruins  porque o barulho que vem do desespero dos vizinhos pelo menos serve para   me preencher com uma imensa sensação de que ainda sou humano; quando me faltam esse ruídos sinto-me meio oco. Eu sei que dizer isso assim pode parecer um pouco cruel. De fato, é cruel sim, mas fazer o que? Dizem que o nosso prazer sempre depende do desespero de outra pessoa. Contudo,  eu não posso ser responsabilizado pelo desespero deles. Sim, disso eu não tenho nenhuma dúvida. Eu apenas moro no mesmo prédio que eles. A culpa das suas aflições devia ser creditada a inúmeras e complexas outras causas entrelaçadas,  vícios e fraquezas, vaidades e ilusões...enfim à várias formas de pequenas limitações que eram potencializadas pelo acaso e pelo azar. Eu apenas sentia prazer em perceber-me em cada uma dessas aflições. 
Por exemplo, no apartamento do meu lado esquerdo mora um casal. Ele trabalha em uma oficina mecânica, ela queria ser dançarina quando era mais jovem. Ambos se conheceram em função do circulo que frequentavam no ensino médio. Eles não escolheram se encontrar, o encontro aconteceu por acaso. Da mesma maneira foi por acaso – por pequenos acidentes e variações afetivas -  que os dois se mantiveram juntos por quase 10 anos (sei disso por causa das discussões, porque só moro nesse prédio a 10 meses). Ela vive triste, com a sensação de que sua vida se esvai e se esgota sem nunca culminar na realização de seus sonhos. Ele bebe muito com os amigos do trabalho. Acho que também não gosta da vida que leva. Ambos tem medo da vida lá fora, de não encontrar outra pessoa, de não conseguir seguir em frente. Eles tem 03 filhos. O salário dele é muito baixo, e eu ouço quase toda noite os dois se golpearem com palavras, como coelhos dentro de uma armadilha, se machucando contra  uma situação da qual não existe saída.
No apartamento da minha esquerda mora um aposentado, um homem relativamente velho, embora ainda em forma. Recluso e pouco sociável, ouvi dizer que era um professor aposentado e escritor. Nunca nos falamos.   Às vezes eu podia ouvir o barulho de sua máquina de escrever. Às vezes o barulho de uma garrafa sendo jogada na parede ou da música “A Cavalgada das Valquírias” podia ser ouvido no começo da madrugada, mas essa não era a melhor diversão. Minha parte preferida do show começava quando ele ligava para uma de suas namoradas. Geralmente ele namorava garotas bem mais jovens, e, como seria de se esperar, muitas delas simplesmente não o levavam a sério. Aquelas que eram bacanas com ele acabavam sendo punidas pelo comportamento de suas antecessoras cruéis. Quando ele ligava para uma dessas namoradas sempre era possível ouvir os seus gritos na noite:
-Porque não atendeu o telefone? Onde passou a tarde toda?
As vezes as brigas eram em seu apartamento mesmo. Podíamos ouvir seus xingamentos através da madrugada
-Maldita puta! Está me dando corno não é? Eu sei que está! Quem é aquele maldito bombado com o qual vi você ontem? Seu primo? Acha que sou idiota?
Essas discussões alimentavam a imaginação dos outros moradores do prédio. Eles especulavam os motivos das brigas e a maioria concordava que as meninas só procuravam o velho por causa de seu dinheiro. Eu nunca aceitei essa tese. Para mim o velho tinha uma certa magia, um ar de mistério e força que atraia as garotas como a luz atrai as mariposas. O problema é que o efeito da atração não era grande o bastante para sobrepujar o efeito de outras forças muito mais fascinantes, como a juventude, as festas e a beleza: elementos que faltavam na vida do velho. Enfim, penso que algumas delas gostavam mesmo dele, mas só por alguns breves momentos, logo elas percebiam que a vida tem atrativos maiores que o misterioso fascínio daquelas paredes cobertas de livros e de antigas batalhas.

Em noites como essa de hoje eu às vezes posso ver o velho na varanda fumando um cigarro e olhando para o vazio. Sua solidão dentro da noite se parece muito com a própria noite, os poucos sons de gatos que preenchem o silêncio só ampliam de um modo absurdo o imenso vazio do espaço. Hoje ele não está lá. Talvez esteja dormindo com uma nova namorada e, momentaneamente, esquecido desse silêncio horrendo que cerca sua pequena ilha de luz. Ambos sabemos que trata-se apenas de um intervalo, de uma breve trégua, e que o caos logo irá brotar novamente em seu coração fazendo romper-se as antigas cicatrizes. Mas por ora, pelo menos, tudo está bem para ele, mas não para mim. De fora das suas amarguras, das amarguras de todos, eu sou aquele que observa essa e muitas outras formas de oscilação lenta e constante. Variações previsíveis, ciclos intermináveis de luta e paz, que eu observo de fora e por isso mesmo não me surpreendo com nada. Nenhuma dor me surpreende, nenhuma decepção me atormenta, pois eu já as vivi na vida daqueles que observo vivendo ao meu redor. Por isso é que a dor deles me dá uma sensação de humanidade e na ausência de um novo drama só me resta meu próprio drama incompreensível para preencher a noite. 

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