Nunca
me senti muito a vontade entre outras pessoas. O pouco de
sociabilidade que tenho hoje foi resultado de um longo e penoso esforço para
direcionar minha misantropia incontornável. As salas de aula foram meu
primeiro contato com o inferno. Simplesmente detestava a escola. Não
gostava, principalmente, do permanente clima de competição entre as
pessoas; aquilo me cansava, me moia por dentro, e me fazia detestar ainda
mais os espaços públicos. Mas era inevitável que eu acabasse participando
de algum modo daqueles jogos, era isso ou o ostracismo, o subsolo do inferno.
Não preciso dizer que sempre me dei mal nessa tentativa, e não era o
único. Havia um outro garoto, acho que o nome dele era Gilmar. Era um
garoto magrela, de grandes orelhas, e um nariz que sempre era alvo das maiores
gozações. No futebol sempre levava rasteiras, ou pior, ninguém o escolhia
e ele ficava no canto comigo em silêncio. Não havia dúvida, Gilmar
era, assim como eu, um grande perdedor. Mas havia uma diferença
importante entre nós dois. Enquanto eu me lamentava ou escrevia poesias
Gilmar nunca dava a impressão de que estava na lona. Se alguém fazia uma piada
sobre seu imenso nariz ele fazia outra ainda maior sobre o mesmo
assunto. Se alguém falasse de sua magreza ele, com toda certeza,
tinha algo bem escroto para falar sobre isso. Gilmar não perdia tempo se
lamentando ou tentando impressionar. A atitude dele deixava todo
mundo atônito. Não disputava as garotas mais bonitas, ia sempre
certeiro naquela que ninguém queria chamar para dançar e a tratava como uma
princesa, de modo que as bonitas acabavam ficando com inveja. Gilmar
tinha estilo. Sempre estava no chão, mas aprendeu a fazer dali um
lugar bonito, digno, honrado. Com aquele garoto eu aprendi uma das
grandes lições de minha vida. Nunca o vi falando mal dos garotos que se davam
bem, nem das garotas lindas que não lhe davam condição. Seguia em frente, se
virava como o que aparecia, e se em algum momento ele chorou ou ficou
desesperado, nem eu nem ninguém jamais soube nada sobre isso. Aprendi
a respeitar aquele sujeito. Ele de fato sabia como ser um perdedor com a maior
elegância. Com ele aprendi a fazer dos meus fracassos
excelentes exercícios para o meu estilo.Nesse
exato instante em que lembro das lições de Gilmar eu estou entornando a minha
terceira garrafa de vinho, sozinho e destruído. Há algumas horas atrás,
quando uma garota me disse que não queria mais me encontrar, eu não
lancei nada de triste ou dramático sobre ela; apenas falei coisas leves
sobre a necessidade de viver novas experiências e sobre o quanto queria
que ela ficasse bem. Acho que até comentei algo sobre um livro fantástico
que ela deveria ler e também sobre a minha necessidade de fazer uma longa
viagem - que não iria acontecer, claro - em breve, de modo que a
separação iria ocorrer de um jeito ou de outro. Ela desligou o telefone
sentindo-se uma boa pessoa, com certeza, mas eu fiz isso sentindo-me um velho
fracasso, mas é claro que ela não soube nem vai saber nada disso. Meu antigo
amigo sentiria orgulho de mim se pudesse me ver agora. Quase consigo ouvir ele
me dizendo:
"Nada
de dramas irmão, esses filhos da puta não merecem o banquete de ver os
deuses rastejando."
Ele sabia que as pessoas não tinham nada a ver
com esses cancros. Sabia manter as coisas leves e deixar que seguissem
como pudessem ser. Com toda certeza ele sabia que mundo era inocente e que,
se não podemos evitar a dor, pelo menos podemos ter o pudor de mastigá-la e
digeri-la sozinhos, ou apenas com algumas garrafas de vinho. E isso não me parece pouca coisa, pelo contrário, me parece que é a única coisa coisa digna a ser feita, a ação decisiva.
E lá vou eu para a próxima garrafa.