domingo, outubro 26, 2008

Afeto Romântico e Afeto Reacionário

Era muito comum no século XIX que os filósofos, literatos e sociólogos se debruçassem sobre os hábitos e idiossincrasias sociais de seu tempo com o propósito (implícito ou explicito) de exercer sobre as peculiaridades do comportamento de seus contemporâneos alguma influência. O tipo de sociedade que sucedeu a do século XIX condenou ao ostracismo das tribunas das igrejas e a marginalidade dos folhetins sensacionalistas o tipo de juízo que moveu a política e a vida privada de nossos antepassados. Pessoas como Nelson Rodrigues, profundamente comprometidas com o projeto de “descaracterizar” a moralidade burguesa, ou escritores de auto-ajuda como o Roberto Shiashiki, muito mais bem sucedidos nas vendas, que reproduzem narrativas medievalescas de afetividade fundada na fidelidade, casamento, renúncia e etc. fundam-se nessa tradição demasiado recente para nós Brasileiros. Em um determinado momento senti a necessidade de escrever sobre a polaridade ambígua desses dois partidos, o dos conservadores, que procuram adaptar o ritmo frenético do nosso modo de vida as velhas e não tão bem sucedidas expectativas sobre como se deve ou não se deve amar, e o partido dos românticos que há mais de um século seguem gritando que o prazer imediato e contingente deve necessariamente submeter à estabilidade da vida familiar.
No sentido de realizar o experimento pós moderno de submeter alguns dos nossos há bitos e costumes a uma forma de atitude comunicativa semelhante a que intelectuais dos dois partidos realizaram, irei dividir essas “inquirições sobre a cultura” em dois grupos: Investigações Românticas e investigações Reacionárias. As investigações românticas partem de um pressuposto comum, que é: A singularidade, a espontaneidade das supostas “pulsões” e “instintos” são melhores que o calculo e a certeza “burguesa” e constituem, ambas, o fundamento do valor dos indivíduos. As investigações (ou melhor, dizendo, as afirmações) reacionárias por outro lado se baseiam-se no pressuposto Cristão de que o indivíduo possui uma “essência” estável a qual nós nos afeiçoamos, portanto, se ocorrem mudanças no comportamento dessas pessoas que comprometem nossos pressupostos afetivos isso constituiria conseqüentemente um dolo, não só para nós que somos “traídos” por alguém que nos mostrou uma “falsa essência”, mas principalmente para o próprio traidor que será inevitavelmente “castigado pelo futuro”.
Essas duas posições, inseridas ambas em nossa cultura e componentes presentes em qualquer diálogo sobre afeto, felicidade e relação constituem heranças e paradigmas que norteiam a forma como as pessoas se descrevem a si mesmas e aos outros indivíduos. Ambas as descrições advogam a posse da “verdade” sobre as “reais necessidades” de homens e mulheres, e são, via de regra, nexos onde a vida publica e a vida privada se encontram muito próximas. O vocabulário que utilizamos para nortear nossas ações, mantendo algum grau de coesão e eficiência, na relação com outras pessoas e o vocabulário que utilizamos para firmar nessa relação os critérios para nossa satisfação ou insatisfação estão estranhamente próximos em questões afetivas e sexuais. Kafka disse certa vez que “A mulher é a ponte para o mundo”, ignorando o conteúdo relativamente machista dessa afirmação, podemos dizer que ela reflete exatamente a compreensão Nelson Rodriaguiana do ciúme e da moralidade como meros reflexos de nosso adestramento social. O outro, segundo essas duas visões, nos conduz ao mundo social e público, a felicidade comunal (diriam os reacionários) e a suas cobranças por adequação (diriam os românticos) e sua conseqüente contradição com nossos instintos “verdadeiros”.

Como habitante de uma cidade grande da America do sul profundamente inclinado, pela minha educação catolico-cristã, a monogamia e ao mesmo tempo como intelectual que aprecia a contribuição da história e tende a achar que a fidelidade, ainda que ocorrendo em um lugar ou outro, nunca chegou a constituir a regra do comportamento sexual humano eu sugeriria que sua exigência a priori e sagrada representa uma forma inadequada de sincronizar o comportamento privado e o publico. Em contrapartida a essas duas partes de minha formação eu ofereceria uma postura não fundamentalista em relação ao afeto, como tenho sugerido em relação a outras questões. Por fidelidade eu substituiria a palavra “regularidade afetiva” e por infidelidade eu colocaria e expressão “variação de comportamento sexual”, tal substituição permitiria algum ganho no campo da liberação de “enemas” afetivos da mesma forma que a palavra “erro” representa um extraordinário ganho em relação à palavra que a antecedeu “pecado”, um ganho que aumenta incomensuravelmente quando substituímos ambas pela palavra “diferença”.
Com essas mudanças poderíamos, quiçá, eliminar tanto a intolerância romântica quanto a reacionária, assumindo em relação ao afeto uma postura democrática e falibilista que não inviabilizaria a consumação nem das relações estaveis nem dos projetos afetivos que priorizam as experiências contingentes. Se a cultura prosseguir no movimento que tem adotado nos últimos três séculos creio ser inevitável que algum arranho semelhante ao que sugeri ocorra. As pessoas tem se inclinado, em minha opinião a descreverem-se de forma cada vez menos vinculada a juízos morais religiosos e homogeneizantes e a sociedade tem prosseguido desde o século XVII afrouxando cada vez mais os laços que costumavam ligar as opções privadas e a aceitação publica. Esvaziado o conteúdo religioso das uniões sexo-afetivas o que restaria do vocabulário no interior do qual a palavra fidelidade tem algum sentido? Veríamos então os sentimentos com estados contingentes e a convivência com um (a) parceiro (a) como algo não menos contingente, resultado das diversas forças, escolhas, atividades e opiniões que compõe a individualidade de cada um e não como uma escolha refletida por um “alguém” em detrimento de outros.

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