sexta-feira, novembro 30, 2007

Tramas e Acordos

Tarde de sol de um feriado, agraciado pelo indulto do patrão eu bebo minha óbvia cerveja e folheio o relatório do Steinbeck enquanto a pequena diverte-se a poucos metros de mim. Ela já fez vários amigos em poucos minutos no parque. Tenho muito a aprender com ela, é um fato, minha suspeita acerca dos conchavos e das tramas nas quais os outros nos envolvem ergue uma barreira entre mim e o coração geral da vida. Ou talvez seja só o resíduo de minha timidez esmagada diante da sadia crueldade necessária. Brincando de pega-pega com os novos amigos Tina ainda não sabe dessas coisas. A maioria das pessoas também não sabe. Talvez não haja nada para ser sabido, afinal de contas. No entanto, ainda que não seja saudável não consigo deixar de pensar na minha garota se consumindo em ciúmes, e o que é o ciúme? Uma tentativa de furtar ao outro sua indeterminação, o que ele tem de mais humano? Uma trama ou um jogo onde as mãos do medo movem as peças dos peões que somos nós? E ninguém está livre do medo.
Prefiro deixar tudo isso de lado. A tarde está linda e as folhas das árvores agitam-se na carícia do vento. Existem risco e dúvida por trás de tudo que nos cerca e isso talvez não seja tão ruim. Mas, como ultrapassar o cordão de névoa que constitui o apego? Também forjei os meus nas noites secas e sozinhas nas quais vaguei sem a luz de um corpo feminino, todavia ainda oscilo vagamente entre a incerteza afirmativa do que sou e essa sombra fria que chamamos segurança.
Não sei até que ponto, somos tecidos do fio de temores dos nossos ancestrais. - O meu namorado tem andado muito estranho – Uma garota em trajes sumários comenta com a amiga que toma um refrigerante. – Agora só quer me levar para sair uma vez por mês! - Ela completa agitando as mãos com unhas imensas e bem pintadas de vermelho- Cuidado amiga. - A colega adverte interrompendo o sorvete- Deve estar com outra na rua, é melhor tomar cuidado com o que é seu.
Fico pensando se é o resultado de uma tradição caquética ou se é impossível amar alguém como indivíduo.
- Papai me compra um sorvete? – Tina me pergunta com seu sorriso maroto; eu enfio a mão no bolso e tiro duas moedas e lhe dou.
- O que o senhor está lendo?
- Lobo mal e os três porquinhos – Respondo.
- Não é nada.
- O senhor está lendo fi-lo-so-fia.
E sai correndo na direção do seu sorvete. Ela tem razão, sempre teria.
O lobo mal pode ser qualquer coisa e nem sempre temos um porquinho com uma casa de tijolos para nos esconder. O lar espedaçado do éden de Steinbeck pode ter sido o meu. A cicatriz no braço, o beijo de uma faca manipulada pela minha ex-mulher é uma prova disso.
A tarde aproxima-se lentamente do final. Chamo a pequena para voltar pra casa, um momento difícil. Mas, ela aceita meus argumentos: pipoca e brincar de monstro e herói, onde eu sempre serei o monstro. Nada muito diferente, mas dessa vez pelo menos é divertido. Damos as costas para o parque deixando para trás momentos alegres, um sonho na memória do tempo. Meu amor se dilata e expande nas quatro direções do universo com o sorriso dela. Chegamos em casa!

segunda-feira, novembro 26, 2007

Negócios

Pedro Felipe terminou seu banho tranquilamente assobiando uma música do Djavan e saiu enrolado na toalha em direção ao quarto. Abriu a porta do imenso armário que ficava embutido na parede e se pôs a escolher entre as diversas roupas que ali estavam a mais adequada para a ocasião. Tirou uma camisa multicor, estilo amante latino, e uma calça jeans preta muito justa, o que o deixava com uma máscula aparência.
Vestiu-se lentamente deliciando-se com o pensamento de ter os seios da Bety em suas mãos. Pedro Felipe sabia do que as mulheres gostavam e sabia tirar proveito de sua posição. Depois de vestido Pedro foi até o barzinho luxuosamente adornado com estatuetas com motivos Hindus e retirou a garrafa de whiske 25 anos. Ele encheu um copo e bebeu admirando-se no reflexo da vidraça de seu luxuoso apartamento. Considerou-se um grande homem. Jovem, solteiro e bem sucedido empresário que soube administrar o patrimônio da família sem se casar muito cedo.
Terminou sua dose e pegou o elevador pessoal. Cada andar de seu prédio era um apartamento, o de Pedro Felipe era a cobertura. Chegou ao estacionamento por volta das 21:30 e sua Ferrari vermelha o esperava. O assobio longo do alarme sendo desligado soou na noite e Pedro Felipi entrou, o pequeno crucifixo preso no painel balançou quando ele deu a partida e ligou o som; Jorge Vercilo começou a cantar enquanto ele saía do prédio e pegava a rua principal. Pensou nas ações da empresa de cosméticos que estavam em baixa e precisariam ser vendidas. Também havia a planilha de custos da empresa de sapatos, seria preciso demitir 30% dos funcionários para fechar o mês sem prejuízo, tudo bem as demissões seriam feitas. Negócios são negócios. Ele continuaria crescendo 3 pontos acima das outras empresas no próximo ano.
A chuva caia nas ruas do centro e o sinal fechou. Pedro parou e ficou com pensando em investimentos para o próximo ano. Foi quando o vidro do carro foi estilhaçado com um estrondo de um cano fuzil invadindo seu carro junto com os cacos e a água da chuva- Mão na cabeça filho da puta- Berrou o encapuzado que empunhava a arma enquanto outro portanto um revolver arrebentava o vidro do outro lado do carro- Quietinho, quietinho aí porra, ou te corto no aço – Pedro ficou em choque e levou alguns segundos para recobrar o controle –leva tudo, pode levar o carro –ele falou gaguejando mas entes de terminar recebeu uma coronhada seca de fuzil na boca que lhe arrebentou metade dos dentes e estraçalhou o nariz –Fica calado seu merda- O homem do fuzil gritou, José Carlos era seu nome, arrastando em seguida Pedro Felipe desmaiado pela gola da camisa , enquanto o outro que portava o revolver, chamava-se Dimas, tirava do bolso uma fita adesiva e amarava os pés e mãos do rico empresário. Atado com um porco Pedro Felipe foi lançado ao porta-malas do carro. Dimas e José Carlos entraram rapidamente no veiculo e cortaram as ruas da cidade em alta velocidade subiram uma rua que margeava o oceano e chegaram a favela. Na entrada de uma rua onde os barracos humildes, muitos furados a bala se misturavam com bares onde homens jogavam sinuca e bebiam aguardente alguns traficantes armados de metralhadoras faziam guarda. Um dos guardas armados se aproximaram do veiculo e depois de falar alguns segundos com José Carlos, se afastou e a Ferrari seguiu até uma grande garagem onde um homem com vários colares de prata e cavanhaque bem feito esperava na porta. José carlos e Dimas desceram do carro e o chão de barro enlameou os seus pés - trouxemos a encomenda como combinado chefia, e um acréscimo que pode render alguma grana- fez sinal para o Dimas que abriu o porta malas e tirou o Pedro Felipe que murmurava suplicas incompreensíveis em função da mordaça- Tudo bem, o carro paga a divida –Falou o homem de cavanhaque- mas seqüestro não me interessa por enquanto, não é rentável e oferece um risco que não posso correr, a vendagem tem sido boa e não quero pelotões anti-sequestros na favela. Termina o trabalho que começou e estamos quites.- José carlos colocou o fuzil na cabeça do Pedro felipe que pensou em Deus como não fazia há muito tempo, contudo as ultimas palavras que ouviu foram- Bom... Negócios são negócios.- em seguida José Carlos espremeu o gatilho.

terça-feira, novembro 20, 2007

Farelos e migalhas.

Estou carregando os fardos de farelo e agora levo o último da minha cota da manhã, o suor junto com a poeira do farelo virando lama em minha pele e a rota calça jeans assando a lateral de minha perna. Após terminada minha jornada sento a um canto do depósito para fumar um cigarro. O Joe cara-de-tigre senta do meu lado e começa a murmurar algo sobre o jogo de futebol de ontem à noite. Pobre afro-descendente quase feliz em seu esquecimento e sua ignorância do que somos. Carne para o moedor e pedras para o muro da insensatez. Joe pede um cigarro e eu dou, ele sorri ao puxar a fumaça, dentes podres como o nosso orgão natural do afeto. Levanto para ir até o ancoradouro comer um sanduíche de pão ovo e presunto e tomar o suco de laranja que a Dan fez pra mim. O alto-falante – um corvo da desgraça- chama meu nome entretanto e interrompe os planos para minha refeição. Subo as escadas para o escritório do gerente remoendo presságios e esperando o pior, o gerente Rodrigues aponta a cadeira e eu me acomodo no couro importado, seus olhos injetados e sérios, os vincos na testa de quem conta dinheiro aos finais de semana, a foto da mulher gorda e flácida e dos filhos pretenciosos na estante: - Seu rendimento caiu Sr.Leon – ele fala folheando papéis enquanto olho para o ponto cego entre nossos olhares. - No 1º trimestre houve uma queda de 20% e esse processo tem se repetido – Submetido aos números e sua verdade não me sobram argumentos, apenas me limito a ouvir calado enquanto ele desfia seu corolário de sentenças e ameaças polidas. - Se continuar assim teremos de fazer cortes no orçamento.- As palavras escorrem de sua boca como a saliva de um crocodilo, um réptil de gravata e um inimigo do outro lado da fronteira. Me vem a cabeça que a humanidade é uma palavra vazia, que estamos perdidos na treva e que viver é um projeto insensato. Rodrigues abre a gaveta de mogno com os dedos de unhas bem feitas e relogio que me sustentaria durante um mês e retira a folha de papel onde se vê no alto da página: Advertência, uma estratégia sutil para demitir sem pagar os encargos,porém não assinar é pedir para ser demitido mais cedo. 33 Anos poucos dentes na boca, sem talento nem profissão eu assino e deixo a caneta de prata do patrão em cima da polida e brilhante mesa de mogno. Seu aperto demão, um requinte de cinismo e crueldade me mandam descer, eu fito cada degrau de acesso ao salão ainda desnorteado e acossado por um medo ancestral. A renuncia e o suicídio, o assassinato e a gestão de negócios, e todos os budas que viveram de arroz e meditação em uma Asia na qual não haviam corporações, televisão nem Marx. Eu ando até o cais para deglutir meu repasto e quase sinto vontade de chorar, não por mim, estou disposto a pagar meu ônus pela construção do inferno, mas pela pequena Tina que me ama sem reservas. Mais um cigarro após o lanche e as águas da baia abaixo do cais me convidando ao seu abraço final de afogamento, não, muito dramático, melhor morrer com as armas nas mãos, ficar observando até onde a treva pode avançar. A sirene toca e eu sei que é hora de voltar ao trabalho, o Joe já está próximo da sua cota de fardos e se prepara para carregar o primeiro. Existem muitas maneiras de considerar um homem feliz, não consigo pensar em uma na qual eu me enquadre, continuamos a jornada de trabalho até o final da tarde, depois do último fardo a gritaria do pessoal no chuveiro, as brincadeiras sobre quem tem o pau menor e todas essas coisas que eles fazem para amenizar o constrangimento de levar uma vida apertada por contradições e indigências. Os últimos raios de sol no rosto e os cabelos ainda molhados me provocam umasensação agradável. As folhas de árvore balançando sob o toque do vento, as nuvens no céu azul longe e a consciência de perceber tudo isso sem estar ali, sim isso também acontece só não sei como vai me ajudar quando eu perder o emprego.

Como era Beatriz

A noite quente de sábado ,em um verão que agita as pessoas e as arranca de suas casas também me arrasta, me traz até a rua 18 e seus bares barulhentos ,seus pedintes deformados pela maldade que nasce da miséria. Mas nem sempre. Eu ando por essas ruas de pedra antiga onde ainda se pode ouvir o eco dos escravos desgraçados e dos índios atormentados diante da coroa e suas perversões. Vou por vários quarteirões fumando e observando , esperando o cansaço ou o motivo aparecerem para entrar em algum bar e beber algo . Aqui as garotas tentam ganhar a vida como podem , cada uma diferente e por motivos diferentes vem aqui , ao centro histórico dar o corpo ao deleite alheio por trocados, objetivando a subjetividade alheia enquanto objetivam a própria subjetividade , um corpo espiritual e volátil de afeto tecido com a bruma de um futuro raramente cogitado.
Resolvo entrar em um barzinho sem musica onde um velho taverneiro serve doses de cachaça guardada em pequenos barris, ele as serve no balcão de madeira onde fileiras de bebuns se encostam e sorvem o liquido claro para regar com luz a alma escura. Eu também peço uma dose para a minha. Enquanto espero pelo meu quinhão de paraíso eu penso na queda e no encontro, na perda da inocência e no prazer angustiante de pensar, recordações de Blake e relatórios para a academia sobre um Stirner que nunca entendi, e por isso não fui admitido. Que tudo se opõe, que viver é uma permanente impermanência, que o gozo é o motor da ponte móvel entre as pessoas , que a compreensão é produzida como a bílis do meu fígado... Minha dose chega e eu a viro em um só gole e peço outra. O fogo da verdade química queimando minha garganta e um feminino anjo negro me olhando do outro lado do balcão. Ela conversa com um sexagenário mais calvo que eu e provavelmente mais abastado também. Sua pele escura, seu lábio grosso, seus seios fartos que me agitam o sangue e uma ternura infinita que me acena de seu riso despojado. Ela pede licença e se afasta de meu concorrente mais idoso, sou solidário para com a marca da idade, mas nesse caso meu desespero se impõe.
Ela sai do bar e eu a sigo, até pararmos em uma barraca cigarros- um maço de malboro- Ela pede- É um cigarro forte para um lábio tão suave - eu comento em seu ouvido e ela sorri olhando - me nos olhos com um atrevimento que me faz gelar com as possibilidades. –Podemos dar uma volta? - pergunto e ela responde afirmativamente com um gesto de cabeça.
Andamos varias quadras fumando e falando sobre nossas vidas. Entramos em outro bar e entornamos mais algumas cervejas. Beatriz: uma vida na favela e 6 irmãos,filhos de uma mãe solteira abandonada varias vezes. Um riso amplo e forte, uma voz intensa como o brilho do sol ao meio dia e uma tristeza muda que nunca se acusa mais que está lá: o excesso de palavras para falar do que é obvio. Consumada a aliança de confiança e atração recíproca subimos para um motel que funciona atrás do bar. Seu corpo despido das peças arbitrarias do vestuário que a oculta se mostra para mim. A curva acentuada de sua bunda, o púbis levemente depilado, o seios coerentemente erguidos na carne consistente e seu gesto feminino de entrega...como um deus tomado pela graça transcendente eu a tomo de maneira suave e furiosa. Como esquivar-se as solicitações da carne? Como refutar as premissas da argumentação do gozo? Como não admitir a compreensão profunda que nasce de uma união sem exigências entre um homem e uma mulher?
Invadi beatriz com calma e profundamente arrancando-lhe suspiros e gemidos finos como vidros se partindo, lutamos desesperadamente na copula louca, na busca da fonte que mataria nossa sede e nossa fome. Cada penetração uma corrente elétrica de realização e força, cada movimento dos quadris de beatriz uma iluminação instantânea e uma redenção do ego, até atingirmos o ponto Maximo em que seu corpo se contorce como uma enguia louca, com a tensão dos músculos e um grito fino no mesmo instante em que me esvaio dentro de suas pernas em uma torrente de gozo quente. Na ternura do momento que se segue desfilam em minha mente as cenas da vida solitária que me espera do outro lado da porta , e eu peço para beatriz que fique do meu lado, mas ela diz que não, e se cala. A fumaça de meu cigarro dança na escuridão do quarto e o silencio interrompido apenas pelo rumor da rua lá embaixo são minhas únicas percepções do mundo por vários minutos, até seu soluço abafado explodir baixinho. Eu abraço Beatriz com força e não digo nada, mas entendo profundamente sua convicção.

terça-feira, novembro 13, 2007

Um dia na vida de Pedro Diogo

Pedro Diogo acordou naquela manhã com a cabeça entorpecida do vinho e o peito estraçalhado pelos sonhos perturbados que sempre lhe perseguiam o sono. O ar abafado de seu quarto e o barulho dos homens bêbados no bar em frente lhe lembraram que se tratava de uma manhã de domingo, sinônimo de bebedeira, encontro familiar e praia para todos, menos para ele que já acordava coma metade do dia encomendado ao patrão. Pedro Diogo foi ao banheiro tomou banho e escovou os dentes sem nenhum pensamento claro. Na cama da qual se levantara deixou a companheira dormindo languidamente. Após o banho e as necessidades elementares Pedro Diogo esquentou o café e passou manteiga em dois pães dormidos, sem importar-se com o queijo e presunto que tantos podiam ter, nem com a sopa de papelão, única possibilidade para outros tantos.
Após terminar sua breve refeição Pedro Diogo sentou-se ao chão de seu minúsculo apartamento de quarta sala banheiro e pôs-se a ler. Não se tratava de um jornal com as notícias do momento, nem de um romance policial, mas de alguns textos acadêmicos que se obrigava a ler imbuído de uma espécie de fé, na esperança de que tais estudos o ajudassem na mudança do tipo de vida que levava.
Sua mulher levantou-se e dirigiu-se ao banheiro. O barulho da água caindo ao chão lhe fez lembrar de que não estava sozinho. Acendeu um cigarro, juntou os livros e pôs-se a andar remoendo idéias.
- Fumando novamente? – A mulher falou com mal - humor, sua fisionomia carregada expunha sua intenção violenta de tolher-lhe aquela liberdade.
- Só um cigarrinho, sabes que não sou viciado.
- Sei que não quero tornar-me viúva, nem sua filha quer ficar órfã. – Ela falou com uma expressão que misturava desdém e complacência. Pedro Diogo nada disse.
Calou-se, como sempre fazia quando a estreiteza do contexto não satisfazia suas exigências mínimas para uma interlocução digna e sincera. Continuou a fumar seu cigarro, enquanto folheava as páginas de um livro qualquer.
- O pão acabou – disse-lhe a esposa, e mais não foi preciso. Pedro Diogo ouviu a ordem implícita na observação, ajeitou os poucos cabelos que lhe restavam e lançou-se a rua tumultuada e tomada por pessoas barulhentas, cujas faces variadas lhe davam vertigens.
Tudo isso lhe atingiu e Pedro Diogo tentava alargar sua perspectiva no sentido de abarcar o horizonte e fugir daquele caos de percepções, mas uma linda morena de seios fartos destacou-se da multidão e Pedro Diogo foi reconduzido novamente a si – mesmo, agora sedento e energicamente agitado.
Pedro Diogo comprou seu pão necessário e retornou ao lar, a patroa já preparava o feijão óbvio. O relógio marcava a proximidade do fatídico momento de dirigir-se ao trabalho. Pedro Diogo foi ao banheiro tomar banho e preparar-se, a água banhou-lhe o rosto com seu toque frio, enquanto ele tentava entregar-se totalmente aquela sensação. Deixando de resistir, acreditava Pedro Diogo, ele deixaria de estar ali. Terminou o banho. Na cama a sua mulher assistia televisão e lixava as unhas. Ele vestiu-se lentamente enquanto observava as imagens que se sucediam na tela. Nenhuma delas lhe dizia respeito. Nem o acidente aéreo, nem o assalto a banco... Nada significava nada. Apenas com seu passado nas mãos Pedro Diogo achava patéticas as vidas alheais. Não se irmanava com os sentimentos alheios, sentia-se atado a si próprio como uma pedra a montanha.
Após vestir-se a almoçar Pedro Diogo beijou a esposa com os lábios molhados de medo e ternura e lançou-se novamente as ruas em direção ao trabalho. Andou algumas quadras antes de chegar ao ponto de ônibus. O sol do começo de tarde esquentou sua pele e uma brisa marítima lhe beijou o rosto pasmo.
Acima dos edifícios o céu lindo era um mundo inalcançável que Pedro olhava para tentar afugentar o desespero, sem conseguir, todavia.
O ônibus lotado o recebeu e ele se acomodou como pôde, tentando evitar o contato físico e psicológico com tantos e quantos o cercavam, até chegar ao seu destino. Chegou ao trabalho cerca de vinte minutos antes da jornada e fumou um cigarro no jardim que dava acesso ao prédio onde funcionava o callcenter. Lançou fora o cigarro e se despediu do céu azul e dos seus sonhos entrando em seguida no salão de atendimento onde centenas de pessoas sentadas em frente aos seus respectivos monitores falavam desesperadamente. Centenas deles, enfileirados, olhando a tela constrangidos. Como um grande tabuleiro de autômatos. Pedro Diogo procurou uma posição de atendimento disponível e se sentou. As ligações começaram.
A primeira era de uma senhora que furiosa com o valor da fatura queria cancelar sua linha. A segunda era de um senhor também furioso, mas por que tivera sua linha cancelada sem o seu consentimento. E foram dezenas dessas situações. Algumas mais simples outras mais complicadas. Uma atrás da outra as reclamações iam se sucedendo.
O interesse alheio, as idiossincrasias pessoais, as patologias de cada um escoavam pela linha telefônica em direção aos ouvidos de Pedro Diogo que tentava proteger-se em vão trás de uma muralha glacial de objetividade. Depois de três horas nessa maratona insana, na qual ele era avaliado incessantemente através das ligações que atendia, do tempo que demorava em cada uma, do tom de voz que usava, Pedro Diogo olhou aliviado para o marcador digital no monitor, pois atingira seu esperado intervalo para o lanche. Desceu para o pátio em meio à gritaria de tantos com o eco das vozes dos clientes lhe consumindo os pensamentos. Tomou um café quente e fumou um cigarro, sentiu-se melhor, mas passou, teve de voltar o atendimento depois de dez minutos. Para mais cinco horas de atendimento.
Centenas de reclamações e problemas depois, sua jornada terminou. Pedro Diogo encerrou os sistemas, pegou a mochila e foi para casa. Mais uma vez esperou no ponto a chegada do coletivo e mais uma vez ficou ouvindo impassível a conversa de seus colegas de trabalho. Ele nada tinha a dizer. Apenas queria seguir vivendo e se possível sem tanta resistência por pare do mundo. Subiu para o ônibus e apesar de levar sempre um livro na mochila resolveu não ler. Ficou calado prestando a atenção em si. Isso costumava fazer bem, mas Pedro Diogo não sabia por quê. Chegou a seu ponto e começou a andar as várias quadras que o separavam do lar. A escuridão se esgueirava pelos becos imundos do subúrbio onde morava. E foi ao passar por um dos becos que Pedro Diogo ouviu uma voz furiosa gritar.
- Parado aí, seu filho da puta!
Pedro Diogo gelou e ficou parado enquanto dois vultos encapuzados e portando pistolas avançaram sobre ele.
- Tira a carteira! Tira a carteira! - O mais alto gritou.
Imobilizado pelo medo Pedro Diogo demorou a obedecer e recebeu uma coronhada na cabeça. Caiu no chão como um pacote estúpido e os homens lhe retiraram a carteira, o celular e começaram a lhe chutar as costelas enquanto diziam:
- Branquelo de merda. E davam um chute.
- Ta gostando de apanhar veadinho? E davam outro chute.
No chão com o sangue escorrendo da boca Pedro Diogo, pensava que ia ser difícil trabalhar no dia seguinte com as costelas partidas. Foi quando sentiu a coronha fria do revólver na cabeça.
- Vai morrer agora, branquelo. Pedro Diogo sentiu uma profunda tristeza, mas ao contrário do que costumam dizer sobre esses momentos não viu sua vida desfilar diante de seus olhos. Apenas lamentou, pois doravante sua filha ficaria sem pai e sua esposa sem marido.Porém, a para sua sorte, a arma falhou com um click seco e os homens correram assustados ao ouvir um carro aproximar-se.
Pedro Diogo ergueu-se cambaleante e foi para casa com dor nas costelas e muito preocupado com o dinheiro que iria ser gasto com remédios.

Percurso Finito

Estou aqui em uma festa na casa de Hélio Mariano e ele está contando suas aventuras pelo Vale da Chapada. A Dan, minha garota está do meu lado, agarrada em meu braço em silêncio. Sua melancolia lhe transpira pelos poros, mas não existe frio nesta tristeza, antes é possível sentir o calor insano do que quer saltar para fora mas se encontra contido por algum tipo de laço, alguma corda de fraqueza ou algo mais forte que o desejo de prazer e deslumbre do corpo: vaidade? Não sei. Há tantos entre tantos entre o possível e o que é, e a carne que pulsa é tão ingênua diante das tramas da vontade que prefiro me calar atônito.
Hélio me pergunta algo sobre Castañeda – Se ele estiver certo, não podemos dizer isso – respondo – E se ele estiver errado tudo que pode ser dito não faz sentido algum. – Ele ri e os imbecis drogados que lhe cercam não entendem nada.
Saio para dar uma circulada com o copo de vinho na mão, o calor alcoólico correndo pelas veias e os pedaços desconexos de pensamentos flutuando no caldo da percepção indivisa e homogênea como sopa de feijão. O momento e a alegria que escorrem entre os dedos e a instabilidade que tenta encontrar um ponto claro. O que quero? Só descubro quando vejo a garota de pele clara, em contraste com a pele escura de Dan ( seus antepassados estragulando tigres na savana, dançando para o milho florescer, gritando enlouquecidos ao deus da mata).
E isso me faz suspirar e a desejar ardentemente, mas e a Dan e seu suspiro? E a ética costurada pelos compromissos mudos que assumimos contra o que queremos? O mundo é contingente e Shiva Nataraja surpresa se assusta com o que criou em sua dança. Apenas os homens, e nesse caso as mulheres, tentam extrair ordem até do próprio ventre do que é caótico: o desejo.
A garota tem os olhos acinzentados e o lábio fino de quem não conhece as tramas do poder. Sua saia hippie de quem acha que é louca, sua tatuagem para consumar um ser que não se deu, e eu a desejando mudo e desesperado. E quanto ao carma? A corrente de causas infinitas que nos determinam inevitavelmente? Todas as questões que isso não responde inclusive aquela pergunta: Quem provocou o giro inicial da culpa? Não sei como minha ignorância pode estar alicerçada em algo tão antigo. Ainda assim se repete a velha oposição entre o que quero e o que devo, mas nenhuma das duas coisas me parece seguro. Viver não é bem uma atividade sensata.
A garota percebe que eu a estou olhando, agora sem o álibi do copo de vinho que jaz vazio em minha mão. Ela não demonstra desconforto, já não sou um garoto e nada em mim lhe chama atenção. Eu me lembro da segunda nobre verdade: A dor vem do desejo. Anulação, fraqueza, niilismo. Nietsche e seu bigode impotente berrando e sorrindo alternadamente. É absurdp crer que basta simpleste ser e estar? Para além dos predicados e dos juízos? Dou às costas a beldade élfica e volto para os braços de minha princesa melancólica. Aceitação e renúncia: sem metafísica nem fé.Mais e o delírio beat de viver desabrochando como um girassol sem peias? E o experienciar que para algumas metafísicas não cristãs é o vôo da águia para além da segurança? Uma jogada arriscada, e tenho poucas fichas, ou não?
Chego à sala e sento ao lado da minha Kaka ( apelido extraído de seu gosto pelo Kafka e pelo mau hábito de plagiar Buckowski), Hélio agora discute com Léo sobre o Decamerão, Doors, Marijuana e Ezra Pound. Eu sem entender nada viro outro copo de uma só vez e a Dan percebe que não estou bem. Invento uma desculpa me despeço dos amigos e caio fora. No caminho falo algumas coisas pra preencher o vazio entre nossos corpos separados. O frio da noite roça com seu dedo de questões meu olho triste. Chegamos a casa e eu durmo soluçando em choro no abraço de kaka.





segunda-feira, novembro 12, 2007

Filosofia !!!

Como muitas pessoas que lêem as barbaridades que escrevo, vivem cobrando de mim algumas linhas mais sérias e menos ressentidas, e como é notório meu hábito impopular de entre uns goles e fardos de farelo ler um Nietzsche um Heidegger ou um Sartre me senti na obrigação de escrever algo sobre filosofia. A princípio pensei em formular alguns princípios e máximas, ou em desenvolver algum ensaio sobre algum autor ou idéias, mas isso levaria muito tempo e como logo, logo, a dona que esquenta meus lençóis vai chegar e interromper meu refinado raciocínio, desisti desse projeto e resolvi falar de maneira mais superficial sobre essas coisas. Os filósofos são gente complicada, se eu tivesse que afirmar a existência de uma verdade absoluta, essa seria a primeira candidata; A segunda seria algo como: obviamente nenhum filósofo precisou dar duro para sobreviver, apenas leram muito e escreveram. Isso pode ser bem sofrido, é verdade, mas eu falo de correr atrás de bandido, carregar sacos de farelo ou dirigir um ônibus oito ou dez horas por dia. Se tivessem feito isso não imagino que tipo de filosofia nós teríamos, talvez nenhuma. Levar uma vida dura deixa as pessoas com uma visão bem estreita e impede o elevado pensamento necessário ao desenvolvimento do saber filosófico.
Sendo assim, nós pobres mortais que se reproduzem muito cedo, que precisam dar duro oito horas por dia e que possuem uma patológica inclinação para o velho e bom “tapa -na- macaca”, quando ocorre-nos o raro desejo de ler um bom livro de um desses sujeitos, nunca conseguimos deixar-nos persuadir e enfeitiçar por seus delírios como eles gostariam.
Nós geralmente lemos os filósofos como se lê um romance, esperando pelo lance seguinte achando fantásticos os movimentos e as mudanças, para depois fechar o livro e ir viver a vida fora do cinema. Todavia, é claro que não faltam devotos para um filósofo. O mundo está cheio de gente atrás de certeza, elevação e de uma forma de ficar por cima da carne seca.
Tem um lance bem psicotrópico na filosofia. Frases desse tipo evidenciam o fato: “presentidade quer dizer: o que constantemente concerne ao homem e lhe oferece morada” Sentiu a viagem? Não? É que é preciso várias doses pra ficar “ligado no lance”. Depois de viciados em diversas substâncias esses sujeitos começam a berrar as suas utopias. Nada contra, também tenho a minha. Por exemplo: fico pensando como seria tudo mais fácil em um mundo no qual não houvesse patrões, essas pessoas de olhos raivosos e sanha assassina. Mas, a minha utopia é bem mesquinha e se resume em um projeto pessoal atingível com os seis pontos da loteria. É, mas quem é capaz de provar que não existe coisa muito mais mesquinha por baixo desses altaneiros anseios reformistas? Prefiro não correr o risco, fico com a minha medianidade.
Acho que as pessoas têm o direito de escolherem o tipo de descrição do mundo que mais lhes aprouver, de se submeterem ao papa, ou as idéias de qualquer um pensador. É claro que estou inclinado a não gostar dessas pessoas, afinal a minha descrição do mundo é uma na qual não existem descrições de mundo pensadas de forma definitiva ou justificadas com pretensões de verdade, e na qual o pensamento está a serviço do momento e não o contrário.
Há momentos nos quais o mundo se parece singularmente com uma montanha de estrume, mas isso é rápido e passa assim que ligo a televisão, tomo uma cerveja ou que minha filhinha começa com seu imenso estoque de perguntas. Sendo assim tão volúvel ( como me disse uma senhora insatisfeita com minha ironia) fico puto da vida quando esses meninos me vêm com suas profecias do apocalipse e perco a compostura. Numa dessas ocasiões de mal entendido social, um menininho de universidade saiu com essa:
- O paradigma cartesiano bitolou a mente das pessoas, as tornaram seres cruéis e desumanos. Precisamos de uma mudança para um paradigma plural, de amplas possibilidades.
Estava fumando um cigarro e deixei o menino falar bastante até que enchi o saco e falei:
- Não sei... Por que mudar? Se as pessoas querem ser cartesianas, que sejam. Não vejo nenhuma “humanidade” para ser corrompida. Vejo apenas pessoas diferentes, com diferentes noções do que é e do que não é corrupção e do que é humanidade. Se você não gosta de alguém, você sai de perto, não tenta desentortar o sujeito. Se não pode sair de perto desenvolve outras estratégias menos conflituosas e constrangedoras, esse salvacionismo pós-moderno me cheira a catequese.
Rapaz, o menino começou a tremer e já não falava coisa com coisa. Na verdade foi bem cruel, podia ter continuado calado. Quem possui uma descrição muito sólida sobre as coisas, quem usa uma idéia ou um sistema de idéias como baliza fica chocado quando ouve coisas desse tipo. Até me arrependi, é verdade. Mas, faria tudo de novo, ah se faria.
A essa altura já é possível perceber mais ou menos quais são as minhas opiniões sobre filosofia, ou sobre falta de filosofia, dirão alguns. É que eu acho que a vida, a minha vida é muito curta para ficar pensando em coisas tão gerais de maneira tão insistente. Prefiro continuar vivendo um dia de cada vez, esperando pelo dia de amanhã para saber o que pensar. Praticando algo parecido com o que os chineses chamam de Wu-Wei, numa espécie de taoísmo irônico. Superando os problemas, tomando meus porres quando o cancro supura, tentando ser um pai legal e um amante não muito escroto ( redefinindo essas qualidades todo dia) ouvindo meu blues e até acreditando em alguma filosofia de vez em quando.