terça-feira, novembro 13, 2007

Um dia na vida de Pedro Diogo

Pedro Diogo acordou naquela manhã com a cabeça entorpecida do vinho e o peito estraçalhado pelos sonhos perturbados que sempre lhe perseguiam o sono. O ar abafado de seu quarto e o barulho dos homens bêbados no bar em frente lhe lembraram que se tratava de uma manhã de domingo, sinônimo de bebedeira, encontro familiar e praia para todos, menos para ele que já acordava coma metade do dia encomendado ao patrão. Pedro Diogo foi ao banheiro tomou banho e escovou os dentes sem nenhum pensamento claro. Na cama da qual se levantara deixou a companheira dormindo languidamente. Após o banho e as necessidades elementares Pedro Diogo esquentou o café e passou manteiga em dois pães dormidos, sem importar-se com o queijo e presunto que tantos podiam ter, nem com a sopa de papelão, única possibilidade para outros tantos.
Após terminar sua breve refeição Pedro Diogo sentou-se ao chão de seu minúsculo apartamento de quarta sala banheiro e pôs-se a ler. Não se tratava de um jornal com as notícias do momento, nem de um romance policial, mas de alguns textos acadêmicos que se obrigava a ler imbuído de uma espécie de fé, na esperança de que tais estudos o ajudassem na mudança do tipo de vida que levava.
Sua mulher levantou-se e dirigiu-se ao banheiro. O barulho da água caindo ao chão lhe fez lembrar de que não estava sozinho. Acendeu um cigarro, juntou os livros e pôs-se a andar remoendo idéias.
- Fumando novamente? – A mulher falou com mal - humor, sua fisionomia carregada expunha sua intenção violenta de tolher-lhe aquela liberdade.
- Só um cigarrinho, sabes que não sou viciado.
- Sei que não quero tornar-me viúva, nem sua filha quer ficar órfã. – Ela falou com uma expressão que misturava desdém e complacência. Pedro Diogo nada disse.
Calou-se, como sempre fazia quando a estreiteza do contexto não satisfazia suas exigências mínimas para uma interlocução digna e sincera. Continuou a fumar seu cigarro, enquanto folheava as páginas de um livro qualquer.
- O pão acabou – disse-lhe a esposa, e mais não foi preciso. Pedro Diogo ouviu a ordem implícita na observação, ajeitou os poucos cabelos que lhe restavam e lançou-se a rua tumultuada e tomada por pessoas barulhentas, cujas faces variadas lhe davam vertigens.
Tudo isso lhe atingiu e Pedro Diogo tentava alargar sua perspectiva no sentido de abarcar o horizonte e fugir daquele caos de percepções, mas uma linda morena de seios fartos destacou-se da multidão e Pedro Diogo foi reconduzido novamente a si – mesmo, agora sedento e energicamente agitado.
Pedro Diogo comprou seu pão necessário e retornou ao lar, a patroa já preparava o feijão óbvio. O relógio marcava a proximidade do fatídico momento de dirigir-se ao trabalho. Pedro Diogo foi ao banheiro tomar banho e preparar-se, a água banhou-lhe o rosto com seu toque frio, enquanto ele tentava entregar-se totalmente aquela sensação. Deixando de resistir, acreditava Pedro Diogo, ele deixaria de estar ali. Terminou o banho. Na cama a sua mulher assistia televisão e lixava as unhas. Ele vestiu-se lentamente enquanto observava as imagens que se sucediam na tela. Nenhuma delas lhe dizia respeito. Nem o acidente aéreo, nem o assalto a banco... Nada significava nada. Apenas com seu passado nas mãos Pedro Diogo achava patéticas as vidas alheais. Não se irmanava com os sentimentos alheios, sentia-se atado a si próprio como uma pedra a montanha.
Após vestir-se a almoçar Pedro Diogo beijou a esposa com os lábios molhados de medo e ternura e lançou-se novamente as ruas em direção ao trabalho. Andou algumas quadras antes de chegar ao ponto de ônibus. O sol do começo de tarde esquentou sua pele e uma brisa marítima lhe beijou o rosto pasmo.
Acima dos edifícios o céu lindo era um mundo inalcançável que Pedro olhava para tentar afugentar o desespero, sem conseguir, todavia.
O ônibus lotado o recebeu e ele se acomodou como pôde, tentando evitar o contato físico e psicológico com tantos e quantos o cercavam, até chegar ao seu destino. Chegou ao trabalho cerca de vinte minutos antes da jornada e fumou um cigarro no jardim que dava acesso ao prédio onde funcionava o callcenter. Lançou fora o cigarro e se despediu do céu azul e dos seus sonhos entrando em seguida no salão de atendimento onde centenas de pessoas sentadas em frente aos seus respectivos monitores falavam desesperadamente. Centenas deles, enfileirados, olhando a tela constrangidos. Como um grande tabuleiro de autômatos. Pedro Diogo procurou uma posição de atendimento disponível e se sentou. As ligações começaram.
A primeira era de uma senhora que furiosa com o valor da fatura queria cancelar sua linha. A segunda era de um senhor também furioso, mas por que tivera sua linha cancelada sem o seu consentimento. E foram dezenas dessas situações. Algumas mais simples outras mais complicadas. Uma atrás da outra as reclamações iam se sucedendo.
O interesse alheio, as idiossincrasias pessoais, as patologias de cada um escoavam pela linha telefônica em direção aos ouvidos de Pedro Diogo que tentava proteger-se em vão trás de uma muralha glacial de objetividade. Depois de três horas nessa maratona insana, na qual ele era avaliado incessantemente através das ligações que atendia, do tempo que demorava em cada uma, do tom de voz que usava, Pedro Diogo olhou aliviado para o marcador digital no monitor, pois atingira seu esperado intervalo para o lanche. Desceu para o pátio em meio à gritaria de tantos com o eco das vozes dos clientes lhe consumindo os pensamentos. Tomou um café quente e fumou um cigarro, sentiu-se melhor, mas passou, teve de voltar o atendimento depois de dez minutos. Para mais cinco horas de atendimento.
Centenas de reclamações e problemas depois, sua jornada terminou. Pedro Diogo encerrou os sistemas, pegou a mochila e foi para casa. Mais uma vez esperou no ponto a chegada do coletivo e mais uma vez ficou ouvindo impassível a conversa de seus colegas de trabalho. Ele nada tinha a dizer. Apenas queria seguir vivendo e se possível sem tanta resistência por pare do mundo. Subiu para o ônibus e apesar de levar sempre um livro na mochila resolveu não ler. Ficou calado prestando a atenção em si. Isso costumava fazer bem, mas Pedro Diogo não sabia por quê. Chegou a seu ponto e começou a andar as várias quadras que o separavam do lar. A escuridão se esgueirava pelos becos imundos do subúrbio onde morava. E foi ao passar por um dos becos que Pedro Diogo ouviu uma voz furiosa gritar.
- Parado aí, seu filho da puta!
Pedro Diogo gelou e ficou parado enquanto dois vultos encapuzados e portando pistolas avançaram sobre ele.
- Tira a carteira! Tira a carteira! - O mais alto gritou.
Imobilizado pelo medo Pedro Diogo demorou a obedecer e recebeu uma coronhada na cabeça. Caiu no chão como um pacote estúpido e os homens lhe retiraram a carteira, o celular e começaram a lhe chutar as costelas enquanto diziam:
- Branquelo de merda. E davam um chute.
- Ta gostando de apanhar veadinho? E davam outro chute.
No chão com o sangue escorrendo da boca Pedro Diogo, pensava que ia ser difícil trabalhar no dia seguinte com as costelas partidas. Foi quando sentiu a coronha fria do revólver na cabeça.
- Vai morrer agora, branquelo. Pedro Diogo sentiu uma profunda tristeza, mas ao contrário do que costumam dizer sobre esses momentos não viu sua vida desfilar diante de seus olhos. Apenas lamentou, pois doravante sua filha ficaria sem pai e sua esposa sem marido.Porém, a para sua sorte, a arma falhou com um click seco e os homens correram assustados ao ouvir um carro aproximar-se.
Pedro Diogo ergueu-se cambaleante e foi para casa com dor nas costelas e muito preocupado com o dinheiro que iria ser gasto com remédios.

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