terça-feira, novembro 20, 2007

Farelos e migalhas.

Estou carregando os fardos de farelo e agora levo o último da minha cota da manhã, o suor junto com a poeira do farelo virando lama em minha pele e a rota calça jeans assando a lateral de minha perna. Após terminada minha jornada sento a um canto do depósito para fumar um cigarro. O Joe cara-de-tigre senta do meu lado e começa a murmurar algo sobre o jogo de futebol de ontem à noite. Pobre afro-descendente quase feliz em seu esquecimento e sua ignorância do que somos. Carne para o moedor e pedras para o muro da insensatez. Joe pede um cigarro e eu dou, ele sorri ao puxar a fumaça, dentes podres como o nosso orgão natural do afeto. Levanto para ir até o ancoradouro comer um sanduíche de pão ovo e presunto e tomar o suco de laranja que a Dan fez pra mim. O alto-falante – um corvo da desgraça- chama meu nome entretanto e interrompe os planos para minha refeição. Subo as escadas para o escritório do gerente remoendo presságios e esperando o pior, o gerente Rodrigues aponta a cadeira e eu me acomodo no couro importado, seus olhos injetados e sérios, os vincos na testa de quem conta dinheiro aos finais de semana, a foto da mulher gorda e flácida e dos filhos pretenciosos na estante: - Seu rendimento caiu Sr.Leon – ele fala folheando papéis enquanto olho para o ponto cego entre nossos olhares. - No 1º trimestre houve uma queda de 20% e esse processo tem se repetido – Submetido aos números e sua verdade não me sobram argumentos, apenas me limito a ouvir calado enquanto ele desfia seu corolário de sentenças e ameaças polidas. - Se continuar assim teremos de fazer cortes no orçamento.- As palavras escorrem de sua boca como a saliva de um crocodilo, um réptil de gravata e um inimigo do outro lado da fronteira. Me vem a cabeça que a humanidade é uma palavra vazia, que estamos perdidos na treva e que viver é um projeto insensato. Rodrigues abre a gaveta de mogno com os dedos de unhas bem feitas e relogio que me sustentaria durante um mês e retira a folha de papel onde se vê no alto da página: Advertência, uma estratégia sutil para demitir sem pagar os encargos,porém não assinar é pedir para ser demitido mais cedo. 33 Anos poucos dentes na boca, sem talento nem profissão eu assino e deixo a caneta de prata do patrão em cima da polida e brilhante mesa de mogno. Seu aperto demão, um requinte de cinismo e crueldade me mandam descer, eu fito cada degrau de acesso ao salão ainda desnorteado e acossado por um medo ancestral. A renuncia e o suicídio, o assassinato e a gestão de negócios, e todos os budas que viveram de arroz e meditação em uma Asia na qual não haviam corporações, televisão nem Marx. Eu ando até o cais para deglutir meu repasto e quase sinto vontade de chorar, não por mim, estou disposto a pagar meu ônus pela construção do inferno, mas pela pequena Tina que me ama sem reservas. Mais um cigarro após o lanche e as águas da baia abaixo do cais me convidando ao seu abraço final de afogamento, não, muito dramático, melhor morrer com as armas nas mãos, ficar observando até onde a treva pode avançar. A sirene toca e eu sei que é hora de voltar ao trabalho, o Joe já está próximo da sua cota de fardos e se prepara para carregar o primeiro. Existem muitas maneiras de considerar um homem feliz, não consigo pensar em uma na qual eu me enquadre, continuamos a jornada de trabalho até o final da tarde, depois do último fardo a gritaria do pessoal no chuveiro, as brincadeiras sobre quem tem o pau menor e todas essas coisas que eles fazem para amenizar o constrangimento de levar uma vida apertada por contradições e indigências. Os últimos raios de sol no rosto e os cabelos ainda molhados me provocam umasensação agradável. As folhas de árvore balançando sob o toque do vento, as nuvens no céu azul longe e a consciência de perceber tudo isso sem estar ali, sim isso também acontece só não sei como vai me ajudar quando eu perder o emprego.

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