Era mais um dia duro de trabalho e os rapazes estavam todos tão esgotados do batente que nem se ouvia as piadas ofensivas sobre esposas e irmãs. Os caminhões faziam fila em frente ao açougue e enquanto os carregadores traziam os fardos os açougueiros trabalhavam rápido com as facas. As postas de carne iam caindo no chão e eu as pegava, fazia uma ultima limpeza e pendurava nos ganchos do frigorífico. Estávamos todo o tempo inteiramente cobertos de sangue. Era uma situação tão comum que nem nos dávamos conta de diferença entre o sangue do gado abatido e nosso próprio suor. Os dois misturavam-se e secavam em nossos corpos e se repetia-se o processo mais umas duas ou três vezes antes de terminar o expediente. Uma vez o sujeito da serra de ossos acertou o próprio dedo com a lâmina e foi levado as pressas para urgência com um pedaço do indicador preso apenas por uma inútil membrana. O salário era também muito pequeno. Mal dava para a coisas mais básicas. Mas não havia nada de melhor no horizonte. E tinha a honra de ganhar o próprio dinheiro, mesmo sendo tão pouco. Na saída do batente os rapazes as vezes derrubavam umas cervas no Bar do Mário. O lugar cheirava a álcool e derrota. As duas coisas estavam sempre rondando as portas de madeira do lugar. Mario era um negro magro e bem alto, de olhos saltados e com o pescoço coberto de patuás, correntes e contas. Ao lado as garrafas com diversos de tipos de infusão ele guardava imagens de santos e orixás. Não era de falar muito. Quem não o conhecia fava com medo só de olhar em seus imensos amarelados olhos. Mas era um bom sujeito, eu acho.
Havia um mendigo que volta e meia sempre rondava o bar do Mario. As pessoas o chamavam de Jorge Maluco, mas ninguém sabia ao certo se esse era mesmo seu nome. Jorge não conversava com ninguém. Sabia falar corretamente, as vezes passava cantando, mas se alguém puxasse papo ele simplesmente ficava olhando para o chão e não dizia nada. Dirigia-se às pessoas apenas para pedir; às vezes pedia um copo de café, as vezes um trocado para o pão, as vezes uma calça velha e etc. Jorge era sobretudo um mendigo anti social. Mario, por outro lado, era um sujeito bem seco e pão duro. “Sou igual a Mandacaru”- Ele costumava dizer a quem lhe devia dinheiro “não dou encosto nem refresco para ninguém.” Todavia o Mario possuía um vínculo silencioso com o Jorge. Era o único mendigo que recebia alguma coisa naquele bar. Todos os dias, às 16:00 hrs precisamente Jorge maluco parava na porta do bar do Mario que prontamente saia com um saco de pão e uma garrafa de café e lhe entregava em silêncio. Jorge tampouco mexia os lábios para agradecer. Como lhe era comum, pegava o donativo e ia-se embora em passo curto e rápido balbuciando coisas que se alguém entendia era apenas ele mesmo.
Um dia, durante a cerveja pós-expediente comentei com o Groto o açougueiro, um branco de Irecê; grande sujeito, bom de trabalho e de copo.
-Por quê o Mário todo dia, no mesmo horário, dá ao Jorge maluco o mesmo saco de pão?
-Eu soube de uma história, mas não sei se é verdadeira – Respondeu o Groto e continuou- Mas o Mário não gosta de ouvir as pessoas falando disso. Fica brabo como cavalo xucro.
Groto entornou mais um copo, olhou para os lados para se certificar de que o Mário não estava por perto e continuou:
-Há algumas décadas atrás o Mário também foi açougueiro. Dizem que era dos melhores. Tão bom que o dono do matadouro o promoveu a gerente. Mas sabe como é, depois de um tempo trabalhando nessa coisa a gente vai ficando um bocado insensível e duro- Parou, deu outra golada e uma trago no cigarro barato. – Bom, como gerente o Mário tratava todo mundo como tratava a carne que destrinchava. Era direto, cortante e sem compaixão. O Jorge nessa época era um auxiliar de carne como você Juan Leon.
-Mesmo?- Interrompi assustado.
-Exatamente, e também era dos bons. Mas o filho único que ele tinha caiu doente, uma doença séria sabe? E naquela época se ganhava ainda menos que hoje em dia. O Jorge faltou ao trabalho alguns dias, correndo para cima e para baixo com a patroa e o filho a procura de um medico, mas o menino continuava cada vez pior. Quando apareceu no açougue para dar satisfação do período ausente o Mário foi cruel. Mandou o pobre infeliz voltar imediatamente para o batente.
- Caralho. Que escroto!
-Pois é. Mas o Jorge se recusou. Aí o Mario disse que se ele não voltasse ao batente não recebia nada. Sem dinheiro, como ele ia comprar comida e remédios para o menino doente? O Jorge desde aquela época era sozinho no mundo. A mulher dele também. Nem parentes, nem amigos...sozinhos. Sem escolha Jorge voltou ao trabalho. No meio do expediente recebeu a noticia de que o filho tinha morrido chamando seu nome. Largou a faca e o avental e saiu alucinado correndo. Ao chegar em casa viu um tumulto em frente ao barraco em que morava. Sua mulher estava estendida ao lado da cama do garoto com os pulsos cortados.
-É, qualquer um ficaria maluco com uma coisa dessas.
-Pois então. Desde esse dia Jorge não dirige uma palavra a ninguém, exceto para pedir uma coisa ou outra. Por remorso o Mario lhe dá essa esmola todo dia. Também passou a se interessar por essas coisas de santo, espiritismo e etc.
Quando terminou de contar a história percebi que o Groto balançou a cabeça e suspirou fundo. Uma coisa triste mesmo. Também era triste para os bois que a gente sangrava todo dia. Mario era duro, escroto também, mas estava apenas fazendo serviço dele. Depois de se estar a tanto tempo procurando um jeito de passar pela trincheira sem sangrar a gente desiste. De uma forma ou de outra alguma coisa vai se partir. As vezes de forma visivelmente cruel, como aconteceu ao Jorge, as vezes de forma silenciosa e lenta. Terminamos a cerveja e fomos embora. No dia seguinte haveria mais sangue em nossas mãos.
Havia um mendigo que volta e meia sempre rondava o bar do Mario. As pessoas o chamavam de Jorge Maluco, mas ninguém sabia ao certo se esse era mesmo seu nome. Jorge não conversava com ninguém. Sabia falar corretamente, as vezes passava cantando, mas se alguém puxasse papo ele simplesmente ficava olhando para o chão e não dizia nada. Dirigia-se às pessoas apenas para pedir; às vezes pedia um copo de café, as vezes um trocado para o pão, as vezes uma calça velha e etc. Jorge era sobretudo um mendigo anti social. Mario, por outro lado, era um sujeito bem seco e pão duro. “Sou igual a Mandacaru”- Ele costumava dizer a quem lhe devia dinheiro “não dou encosto nem refresco para ninguém.” Todavia o Mario possuía um vínculo silencioso com o Jorge. Era o único mendigo que recebia alguma coisa naquele bar. Todos os dias, às 16:00 hrs precisamente Jorge maluco parava na porta do bar do Mario que prontamente saia com um saco de pão e uma garrafa de café e lhe entregava em silêncio. Jorge tampouco mexia os lábios para agradecer. Como lhe era comum, pegava o donativo e ia-se embora em passo curto e rápido balbuciando coisas que se alguém entendia era apenas ele mesmo.
Um dia, durante a cerveja pós-expediente comentei com o Groto o açougueiro, um branco de Irecê; grande sujeito, bom de trabalho e de copo.
-Por quê o Mário todo dia, no mesmo horário, dá ao Jorge maluco o mesmo saco de pão?
-Eu soube de uma história, mas não sei se é verdadeira – Respondeu o Groto e continuou- Mas o Mário não gosta de ouvir as pessoas falando disso. Fica brabo como cavalo xucro.
Groto entornou mais um copo, olhou para os lados para se certificar de que o Mário não estava por perto e continuou:
-Há algumas décadas atrás o Mário também foi açougueiro. Dizem que era dos melhores. Tão bom que o dono do matadouro o promoveu a gerente. Mas sabe como é, depois de um tempo trabalhando nessa coisa a gente vai ficando um bocado insensível e duro- Parou, deu outra golada e uma trago no cigarro barato. – Bom, como gerente o Mário tratava todo mundo como tratava a carne que destrinchava. Era direto, cortante e sem compaixão. O Jorge nessa época era um auxiliar de carne como você Juan Leon.
-Mesmo?- Interrompi assustado.
-Exatamente, e também era dos bons. Mas o filho único que ele tinha caiu doente, uma doença séria sabe? E naquela época se ganhava ainda menos que hoje em dia. O Jorge faltou ao trabalho alguns dias, correndo para cima e para baixo com a patroa e o filho a procura de um medico, mas o menino continuava cada vez pior. Quando apareceu no açougue para dar satisfação do período ausente o Mário foi cruel. Mandou o pobre infeliz voltar imediatamente para o batente.
- Caralho. Que escroto!
-Pois é. Mas o Jorge se recusou. Aí o Mario disse que se ele não voltasse ao batente não recebia nada. Sem dinheiro, como ele ia comprar comida e remédios para o menino doente? O Jorge desde aquela época era sozinho no mundo. A mulher dele também. Nem parentes, nem amigos...sozinhos. Sem escolha Jorge voltou ao trabalho. No meio do expediente recebeu a noticia de que o filho tinha morrido chamando seu nome. Largou a faca e o avental e saiu alucinado correndo. Ao chegar em casa viu um tumulto em frente ao barraco em que morava. Sua mulher estava estendida ao lado da cama do garoto com os pulsos cortados.
-É, qualquer um ficaria maluco com uma coisa dessas.
-Pois então. Desde esse dia Jorge não dirige uma palavra a ninguém, exceto para pedir uma coisa ou outra. Por remorso o Mario lhe dá essa esmola todo dia. Também passou a se interessar por essas coisas de santo, espiritismo e etc.
Quando terminou de contar a história percebi que o Groto balançou a cabeça e suspirou fundo. Uma coisa triste mesmo. Também era triste para os bois que a gente sangrava todo dia. Mario era duro, escroto também, mas estava apenas fazendo serviço dele. Depois de se estar a tanto tempo procurando um jeito de passar pela trincheira sem sangrar a gente desiste. De uma forma ou de outra alguma coisa vai se partir. As vezes de forma visivelmente cruel, como aconteceu ao Jorge, as vezes de forma silenciosa e lenta. Terminamos a cerveja e fomos embora. No dia seguinte haveria mais sangue em nossas mãos.
2 comentários:
É, não dá mesmo para caminhar sem ferir e ser ferido.
Hello meu caro !!
como sempre Juan Tradutor da VIda assim como ela é)
saudaçãoes e abraços
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