domingo, maio 09, 2010

Apreciação do açougue

Acabei de chegar. Coloquei as chaves e a carteira sobre a mesa, joguei uma água na carcaça, abri uma garrafa de vinho e sentei para escrever. Tinha ido até o subúrbio levar uma frango para minha mãe e ver minha filha na casa de minha ex-mulher. Um tormento, a começar pelo transporte lotado com estorvos gritando como se estivessem sendo currados. As pessoas me olhavam quando eu passava, como se assombradas com o fato de eu não lhes dar a mínima, ou tentar não lhes dar pelo menos. Muito, muito barulho. Caras marcadas e feias, olhinhos arrogantes a vazios. Segurando suas coisinhas, suas mulherizinhas, celulares, carros e óculos escuros até dentro do ônibus. Estúpidos. Minha mãe estava lá. Com sua música evangélica como sempre. A mesma que era há trinta anos, conforme posso me lembrar. A casa imunda com pratos e roupas sujas amontoadas nos cantos. Fez uma festa quando me viu, ou quando viu o frango e o peixe em posta que eu levava. Claro que ela não precisava levar a vida daquele jeito, mas foi exatamente assim que ela passou a maior parte da vida. Reclamando, lembrando do passado, sem dar nem mesmo meio passo pra frente. Minha irmã mais nova estava lá também. Estirada no sofá. Me pediu dinheiro para beber. Era só o que sabia fazer, além de trepar, é claro. Dei um trocado a ela e fui ver minha filha.
Estava de cara fechada como sempre. Uma criaturinha que já tinha sido tão doce e alegre, tão suave e vivaz quanto um girassol infinito brilhado no horizonte está se tornando cada dia mais cheia de raiva e de azedume, como aquelas carinhas doentes que vejo nas ruas aos milhares.A responsável pela degeneração i me gritou de dentro da casa. Um monstro de varizes, tecido adiposo e rancor amargurado que um dia já se deitou em minha cama, minhas tripas se contorcem só de imaginar. Eu havia presenteado minha filha com uma câmera fotográfica que deu defeito no dia seguinte, apesar de ser nova. Foi motivo o bastante para ela espumar pela boca enquanto gritava, ameaçava e lembrava de coisas enterradas no passado. Uma visão dantesca, irritante, mesquinha. Minha filha estava ali, dia e noite vivendo a sombra daquele monstro venenoso, amando uma víbora que lhe enxertava no coração pestilência, inveja e raiva.
Saí arrasado. Desejando que a raiva daquela criaturinha a fizesse explodir em um milhão de minúsculos pedacinhos. Comprei uma garrafa de vinho no caminho. Já estou no segundo copo. Um centopéia negra se move no canto da sala, eu sou sua janta e ela está cansada de morder apenas minhas extremidades. Não vou cruzar com nenhum Buk nem nenhum Jidu pelo meio do caminho. Não poderei começar de novo, descobri subitamente que minhas raízes estão definitivamente cravadas na lama suja, que não nutre, apenas suga e consome a minha energia. O beija flor pousou na cerca, não encontrou flores sem mercúrio, o muro está cada vez mais alto. Preciso de mais um copo.

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