sábado, outubro 30, 2010

Mesa de pôquer

Abri a porta, e meu olhar correu para os papeis que me lembravam de obrigações acumuladas. Eu estava protelando o inevitável, evitando o atrito e me refugiando em desculpas. A grana já foi mais curta, a responsabilidade e o medo de fracassar também, porque antes eu simplesmente não tentava e via certa nobreza nisso. Deixo a pasta no chão, sob o tapete e corro para o banheiro. Calor dos infernos. Todo mundo com uma lata de cerveja nas ruas, as praias lotadas. Os machões óbvios e assustadoramente ressentidos aproveitavam-se do coletivo lotado para roçar-se nas nádegas das senhoras que só queriam chegar aos seus destinos. Em algum momento eu vou compreender o que isso quer dizer, a estupidez, digo. Essas multidões agitando-se, berrando, sofrendo, em torno de um grupo de sujeitos vestidos com uma camisa de determinadas cores, cuja organização em um certo padrão e somadas a um nome qualquer tornava-se a manifestação de algum tipo de deus . Talvez muita ausência de sincronia com meus contemporâneos seja o meu diagnóstico. Veja, tem essa sexualidade exacerbada associada aos resquícios pútridos da moralidade finda. Sim, o gozo; todos querem. Mas que raios vêm a ser essas palavras que todos eles carregam em seus beiços medonhos? Deus, fidelidade, compaixão, fé? Se há um deus inda vivo, já não seria ele, como afirma Isaac Bashev Singer, o Deus do gozo? Sim, para pessoas honestas talvez. Mais os labirintos tortuosos de meus vizinhos, atormentados pela sombra de pais também insanos, não o pode admitir.
Uma chaga de vazio tem seus méritos: não supura e não mancha alheias camisas. Mas eles ficam aí no caminho. Tortuosos, nefastos. De outra maneira hilárias são as contradições. Uma conhecida que defendia o amor livre a maldizia o casamento, como se para alguns destinos inviáveis casar não fosse a única chance de uma aliviante trepada vez ou outra. Uma outra defendia a verdade e apenas a verdade sobre toda e qualquer coisa, mas era fraca e fugia da verdade de si, não falava desse assunto constrangedor. Ainda conheci muitos outros tropeços, alguns meus, inclusive. Sim, não me absolvo, e nem isso é absolvição. Um dia farei uma lista de todas as trapaças que presenciei nessa mesa de pôquer. Eles pensam que me estão me enganado. Por detrás dos olhares eu rolo de rir, mas isso não me compensa por nada. Estou preso. Sem chance de fuga. Atado a esses ardis e sem tribunal ao qual recorrer. No sonho da noite passada eu era um presidiário. Não lembro qual tinha sido o delito, mas francamente pouco importa. Não havia mais lugar para mim junto a mesa de pôquer. Eu agora era alvo e ferramenta para o exercício de pequenas vinganças, por pequenas pessoas. Jogado daqui para ali, ordenado e esmagado como um nada desnudo diante de quem possuía o controle. Tudo muito confuso. Tudo uma imensa piada. Preciso me concentrar. Saí do banho, peguei os pápeis e comecei a trabalhar em mais uma etapa. Uma conspiração se prepara, posso pressenti-la chegando. Vou olhar a onda de frente e sorrir.

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