domingo, maio 31, 2009

Sobre a ansiedade.

Como pode um homem pressionado pela pobreza material sentir que toda sua vida é uma mentira? Não é a sobrevivência a primeira exigência que a vida impõe? Ou algum distúrbio mental poderia ser responsável pelo delírio burguês ao qual damos o nome de “busca da felicidade” na alma de um condenado? Essas perguntas afligiam a esse mesmo condenado que extraia o seu sustento de uma vida falsa que se dividia entre o trabalho angustiante e uma vida afetiva insossa. Talvez essa fosse a razão da sua ansiedade. Ou talvez a causa de tal insatisfação fosse muito mais profunda e estivesse localizada nas esquinas do seu passado, nas marcas cegas e nos hematomas que a realidade lhe tinha tatuado na carne pouca. Havia muitas vozes a falar em seu nome, e algumas delas até alegavam que ele era feliz, outras afirmavam, todavia, que ele era feliz apenas na medida do possível e finalmente algumas que afirmavam que a felicidade não existia, ou que era inatingível. E entre esses pensamentos que se revezavam esse homem seguia falando aos seus amigos, amantes e parentes sobre coisas das quais não tinha certeza alguma. Impedia-lhe talvez o medo a verbalização de sua incerteza. A ansiedade das pessoas em verem suas próprias escolhas confirmadas por ele pressionava-o e exigiam dele a mentira como único recurso de convivência social. O hábito, o medo e as próprias dúvidas desse homem colaboravam para levá-lo a repetir os seus dias em uma constância admirável, embora nele mesmo tudo fosse um jogo permanente de forças prontas para ceder as circunstâncias. Esse homem duvidava que qualquer vida humana possuísse um ponto final em determinada escolha. As mudanças que ele constatava em si mesmo faziam-lhe cético em relação a estabilidade das emoções e crenças alheias. Todavia, ele não duvidava absolutamente que houvesse pessoas estáveis para as quais o que é bom, belo e desejável não muda nunca. Enfim, ele duvidava da própria duvida e assim acabavam acreditando que os outros estavam certos e que sua insatisfação era apenas algo passageiro, que sua vida ia melhorar, que iria ter um emprego melhor, uma casa própria, netos etc.
De todas as coisas o que mais deixava esse homem triste é que com a sua incerteza ele fazia sofrer a quem ele tinha em alta conta, pessoas em quem ele depositava um grau relativamente estável de afeto, e que sofriam com a simples menção da palavra “dúvida”. Essas pessoas precisam da “certeza” do seu afeto, da sua eterna fidelidade, da impossibilidade de mudanças e da clareza sobre sua verdadeira natureza. Então ele acrescentava ao seu fardo o cuidado polido de ocultar os seus pressentimentos, afinal além de não ter certeza destes, eles poderiam ferir a quem não merecia. A mentira, como já dito, era algo inevitavel para esse homem, fosse ela acerca de seus atos, fosse ela acerca dos seus pensamentos e sentimentos. Era ele um joguete de circunstâncias e uma vitima de seus próprios atos. Cada um destes atos e escolhas cristalizava-se ao seu redor como uma pele de diamante e cada um que o observava acreditava que essa pele era ele mesmo e exigia-lhe, implicita ou explicitamente a confirmação deste preconceito. Se um dia ele mostrou-se interessado em barcos e por esse interesse conheceu pessoas, estas o encontravam na rua e colocavam-se a falar interminavelmente em barcos, e ele já não se interessava de forma alguma neste assunto. Essa incomoda situação repetia-se em muitas áreas da sua existência.
Viu esse homem lugares lindos onde poderia ter vivido outras vidas mais belas, ou sofrido de dores maiores. Conheceu esse homem mulheres que poderiam ter-lhe dado uma vida mais plena, filhos fortes e autênticos ou simplesmente loucura e morte. Sabia de profissões promissoras que poderiam lhe ter garantido uma carreira brilhante, inscrevendo seu nome na história ou somente garantido-lhe uma vida monótona e a pobreza mendicante.
Assim a vida desse homem foi escorrendo, não sem mudanças, claro, mas sem a realização da maioria das possibilidades de sua alma que se revolviam em seu amâgo como filhos. Esse homem não viveu amores que em sua mente poderia ter vivido se ele mesmo vivesse em um mundo movido por forças outras, nem se aventurou aos horizontes que ora sorriam com suas promessas e ora ameaçavam com suas ameaças. Ele envelheceu sem ver diminuídas tantas inquietações. Silenciosamente progredia nele a consciência de que agora só lhe restava à pergunta: E se?

2 comentários:

Rafael de Medeiros disse...

Depois daquele papo, li o texto. Squei tudo.

Abrass!!!

Rafael de Medeiros disse...

Cara, eu estou lendo "O Livro do Desassossego", do meu irmão espiritual(não no sentido Kardecista)Fernando Pessoa. E a coisa vibra nessa frequência aí cara, hehe. E se?, E SE?!!!!!!