Tomé empilhava caixas. Uma após a outra ele montava pequenas torres nos fundos do depósito do supermercado. Fazia aquele trabalho há algum tempo. Era mecânico e repetitivo. Enquanto empilhava aquelas caixas sonhava com praias, garotas e algum tipo de respeito mas nem imaginava como se poderia conseguir aquilo naquelas circunstâncias . Às vezes , entre um carregamento e outro, ia ao banheiro e aproveitava para fumar um cigarro. Naquele dia havia acabado de fazer isso quando foi chamado ao RH.
Tomé desceu as escadas que ao contrário do lugar em que trabalhava eram limpas e refrigeradas. Andou mais alguns metros até chegar a sala do RH onde uma dona branca, muito maquiada, coberta de bijuterias e um longo nariz de pássaro lhe sorriu apontando um assento.
- Sente-se senhor Tomé.- Disse o pássaro – o senhor aceita um café?
-Não, muito obrigado.
- Bom, não precisa ficar com medo, é uma entrevista de rotina, para avaliar o grau de satisfação de nossos funcionários. Vou lhe fazer algumas perguntas. Seja sincero tá?
- Claro dona.
E ela começou. Se ele gostava do trabalho. Se pensava em promoção. Se o salário satisfazia suas necessidades básicas. Procurou não hesitar demais. Silêncio nestas horas é uma confissão. Tomé lia Marx, Adam Smith, Bakunin e Proudhon mas respondeu a tudo de forma convincente e risonha. O trabalho era ótimo. Em todos os aspectos. Bom mesmo. O salário também era o bastante para o que precisava.
Saiu da entrevista se sentindo muito mal, mas parecia-lhe que tinha convencido o pássaro.
Terminou o batente e mudou de roupa. No caminho até o ônibus imaginou como seria bom encontrar uma garota diferente. Alguém que não lhe cobrasse coisa alguma. Que apenas lhe desse o corpo, o sorriso e o seu tempo sobre a terra sem lhe oferecer risonha uma lamina de barbear para a extirpação do orgulho. Subiu no mesmo ônibus de sempre, cercado das mesmas caras amassadas e sentou-se no mesmo banco de todos os dias. Desceu também no mesmo lugar e viu a fachada da casa alugada em que morava sem perceber que ela estava ficando cada dia mais velha e descascada.
Entrou pelo portão de zinco a abriu a porta de madeira. Na sala sua mulher assistia a uma novela. Naquele momento desenrolava-se uma cena em que a atriz principal descobria que era traída por seu marido. Tomé escorregou pela sala após um “boa noite” mecânico, respondido de forma também mecânica.
- Amor! – Sua esposa gritou da sala enquanto Tomé virava uma cerveja recém saída da geladeira – Se chateia se eu lhe fizer uma pergunta?
- Não, pode falar – Tomé deu outra golada, esvaziou a garrafa, dando um suspiro de olhos fechados desta vez.
- Você me ama de verdade? Quer dizer, você pensa em outras garotas, sente ou já sentiu vontade de dormir com outra mulher? Se isso acontecer é melhor acabar, não importa o quanto seja bom viver com você.
Tomé parou para pensar pela segunda vez. Não podia hesitar. Já tinha lido Carl Rogers, R.D Laing, Freud, Reich, Stirner e Sartre mas respondeu sorridente que jamais tal coisa lhe havia passado pela cabeça. Deu outra golada. Sua mulher continuou assistindo a novela e Tomé entrou no banheiro. A água do chuveiro lhe caiu sobre a cabeça. Ele se sentiu limpo pela primeira vez naquele dia.
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