quarta-feira, dezembro 23, 2009

Um fragmento de instante.

Era uma dia muito quente, como são a maioria dos dias por aqui, e depois de uma semana de batente eu não esperava nada além de um pouco de ócio e saudável preguiça.
Acordei tarde, como sempre fiz aos finais de semana e fiquei até o inicio da tarde bebericando e um fumando um ou outro cigarro. A rua agora estava insana, eu sabia. Os bares e as igrejas lotados. O tempo fustigava as pessoas as obrigando a livrar-se dele de alguma maneira. Eu nunca tive problemas com o tédio. Escrevi meus melhores poemas e contos nos largos períodos de desemprego e ócio. Se tive algum problema com solidão nesse tempo todo, como toda certeza, foi apenas por falta de mulher. Saciado de comida e de sexo, pode apostar, não me inquieto com muita coisa. Todavia, os bens primários nunca são definitivos. As mulheres trabalham para tornar a coisa toda complicada e os patrões começam pedindo sua mão de obra e terminam exigindo sua alma devotada para o sucesso de suas aflições. Dizem que é um signo de nossa condição o fato de não reconhecermos essa mesma condição. Sempre se quer mais do que se pode alcançar.
Bom, fiquei naquele ócio soberano até o cair da tarde quando fui à esquina comprar umas cervejas e algum alimento. A patroa tinha ido encontrar-se com algumas amigas de trabalho e falar mal de mim e de seus respectivos esposos. Agitavam-se todos nas ruas da favela. A musica ressentida ecoava violenta nos auto-falantes. Um quarto de machismo pobre, um de exclusão econômica, um quarto de impotência prática traduzido em potência verbal e para coroar uma última fração de cristianismo mal introjetado. Tudo isso servido á temperatura ambiente de 38 graus regado a cerveja, sexualidade precoce e evasão escolar. Voilá ! Eis a musica baiana.
Eles vão estar no seu caminho. Elas sempre vão dificultar as coisas. As pressões virão de todos os lados e você vai esquecer o motivo de correr na corda bamba muito antes de ser atirado lá de cima. Talvez você nem chegue a perceber como as raízes estão na superfície e não há mistério algum. Só a fome, a sede, o medo, a insegurança e o desejo faminto de redimir-se e segurar as rédeas.
Dei-me conta repentinamente de que era o natal e isso não me dizia coisa alguma, como também tenho certeza, dizia muito pouco há quase todo mundo. A sociedade cada vez mais parece-se com aquilo que ela sempre foi: um imenso torno de metal em volta de nosso pescoço. E o pior é que a grande maioria das pessoas se identificam com esse torno e carregam as palavras que lhe servem de instrumento como se fossem suas bandeiras. Morrem por essas bandeiras, matam por elas e seguem cegamente uma cenoura na ponta de uma vara enquanto movem para a frente o que dizem desprezar (se é que dizem isso).
Com meu alimento retornei correndo para casa e continuei bebericando enquanto cozinhava meu repasto. O Guerra ligou.

- E aí Man, que tal uma cerva mais tarde?
-Uma boa, onde mesmo?
-No mesmo lugar de sempre.
-OK, a gente se vê.

O lugar de sempre era um bar deserto onde não havia indícios dessa péssima musicalidade de nossa terra, nem as costumeiras manifestações da intelectualidade baiana. Apenas mais uns tragos e a conversa repetida sobre Buk, heroísmo e finitude.

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