Uma segunda doce e tranqüila. João Paulo estacionou o carro na garagem da clínica, lá fora o calor litorâneo de Salvador começava a elevar-se; dentro do automóvel o ar condicionado conjugado a uma suave melodia de soul fazia tudo parecer muito fácil. Desceu do carro, cumprimentou Jonas, o vigia, que já suava sob o uniforme azul anil e o boné. João Paulo subiu o elevador da clínica "Amor e Cuidado" com o mesmo sorriso satisfeito de sempre. Passou pela secretária que lhe entregou uma pasta com a ficha dos atendimentos daquela manhã.
-Quantos hoje? perguntou.
-Apenas quatro doutor Paulo.
-Hum, nada mal. Reserve mesa para mim no restaurante Van Gogh. Avise que vou chegar antes das 12:00.
-Perfeitamente doutor.
Deixou a valise sob a mesa, vestiu o jaleco, acomodou-se confortavelmente e se pôs a ler os prontuários. Fez algumas anotações em cada um deles e após tê-los lido respirou fundo, apertando o botão do interfone em seguida.
-Pode mandar a primeira paciente entrar.
A porta abriu-se após alguns segundos e uma mulher beirando os 30 anos e vestindo jeans e camiseta estampada entrou pela porta.
-Bom dia doutor Paulo, com licença.
-A vontade Cristina.
Não tinha grandes atrativos. Os peitos eram bem caídos, mais que a média nacional. Os olhos estavam emoldurados em duas grandes olheiras e as pernas também eram bem finas. Parecia acuada e com vergonha de existir. Era como tudo que fizesse fosse passível de penalização. Após todo preâmbulo de praxe ela deu continuidade a história que tinha começado na outra sessão. Cuidava do pai doente, seus irmãos homens estavam todos presos e a única irmã mulher era prostituta. Não conseguia arranjar um namorado e também era atormentada por pesadelos nada divertidos. Paulo acompanhava todo o relato em silêncio. Ele era atencioso, disso não resta dúvida. Imterrompia apenas para pedir mais detalhes disso ou daquilo. Era a 2º sessão da terapia. Muito cedo para um diagnóstico. Mas haveria um, claro. Tinha que haver um. As coisas podem ser melhoradas, sempre. Mas naquele dia Paulo não chegaria a descobrir exatamente como; ele iria pedir simplesmente que cristina continuasse prestando atenção em si mesma e etc.
Na garagem o vigia que cumprimentou o Paulo pela manhã se angustiava com a perspectiva do desemprego. Era como se tivessem implantado um roedor em suas entranhas e o bicho estivesse com muita fome. A empresa de segurança para a qual trabalhava tinha perdido o contrato com a clínica de Paulo. Jonas já passava dos 50 aos e sabia como era quase impossível conseguir um emprego nessa área com a sua idade. Além disso sua mulher tinha dado o fora com um sujeito mais novo e que ganhava bem mais. É difícil tirar a razão dela, Jonas era feio como um susto. As pessoas da clínica não conseguiam encará-lo quando ele estava sem boné. Uma acne selvagem havia devastado seu rosto durante a adolescência e o bruxismo tinha tornado os seus dentes parecidos com um serrote quebrado. Separado, com aquela idade e com aquela cara Jonas só conseguia sexo pagando. A noticia da demissão serviu como catalisador dessas e de muitas outras frustrações. Coisas dolorosas para as quais seu limitadissimo vocabulário não possuía imagens o bastante. Talvez Paulo pudesse tê-lo consertado, como certamente fará com Cristina (claro que fará!), se tivesse chance para isso. Mas ao final daquele dia o estopim aceso pela noticia da demissão chegou ao fim. Ás 17:30 de uma tarde quente em Salvador às pregações dos pastores não serviam, a esperança não servia, a cachaça vagabunda com os outros fracassados não servia e Jonas já estava muito cansado para tentar alguma coisa nova. Cansado...Cansado dos puteiros, das igrejas, das piadas com a sua aparência, do mal humor dos bacaninhas e sua maldita vida perfeita planejada na buceta de suas mães branquelas. Mas de que adiantaria atirar-se contra eles? No essencial ele continuaria Jonas...e por isso pela primeira vez ele utilizou a arma do plantão.
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