terça-feira, setembro 08, 2009

Fantasias

Nunca mais ouvi falar a respeito dela. Acho que cansou-se das minhas inconstâncias, ausências e queixas ou quem sabe era o meu desempenho físico que já não a satisfazia. Mas não cabe culpar, só posso acha-la muito razoável, não importa o motivo. Existem tantas carências a determinar nossas escolhas que não posso recriminar nenhum dos possíveis motivos femininos. Tampouco posso dizer que é como se nada tivesse acontecido. Coloco-me diante das coisas com a sensação da destruição iminente. Tudo para mim é urgente e intenso. Não sei lidar com leveza e despreocupação. Em cada jogada aposto todas as fichas e isso me atrapalha, tanto por me deixar sem cachê para outras apostas importantes quanto porque isso me deixa realmente esgotado. Saí de casa a noite para espairecer as ideias. O senhorio deu o ultimato de desocupação do imóvel. Meu ultimo salário desemprego acabaria dentro de uns dois ou três dias. A chance de eu conseguir ganhar alguns trocados com o que escrevia era também muito remota. Ao contrário do que Genet, Bukowiski ou Artaud diziam não existe nenhum charme em ser um vagabundo incompetente para o sucesso social. Se tal sucesso dependesse de algum tipo de doença eu a contrairia com a máximo prazer.
Vi uma placa flutuando na escuridão anunciando algum tipo de emprego. Me aproximei e vi que se tratava de um pequeno pub, destes que a rapaziada descolada usa para divertir-se em grupo. Com as roupas desgastadas que eu estava usando certamente seria enxotado a pontapés caso resolvesse frequentar um lugar assim. Tudo era pintado de preto. A decoração era em estilo gótico, ou coisa parecida, o pessoal lá dentro cultuava a morte. Quando eu era muito mais jovem eu tinha a impressão de que viveria bem pouco. A morte para mim sempre esteve por perto. Não que eu fosse portador de alguma patologia terminal, mas eu tinha aquela inclinação bem romântica de que uma vida longa não fazia muito sentido. É claro que isso foi superado, até certo ponto pelo menos. Entre as indas e vindas de meus interesses essas inclinações também foram dividindo lugar com outras formas de lidar comigo mesmo. Uma certa forma de insegurança me levava a não querer estabelecer raízes definitivas em nada. Eu poderia dizer que minha vida e infância levou-me a isso como já fiz em outros textos. Não quero fazer isso agora. Lido melhor com a morte e com a vida hoje. Logo, esses guris trepando com tudo e com todos e cultuando a morte me pareciam algo bastante cômico, mas eu precisava de trabalho.
Me aproximei da recepção onde um segurança imenso recepcionava os convidados. Antes que eu pudesse abrir a boca ele me lançou um destrutivo olhar de desprezo.
-EU gostaria de me candidatar a vaga.-Eu disse.
Sem se dar ao trabalho de me dirigir uma palavra ele acenou desdenhosamente em minha direção pedindo que eu aguardasse. Fiquei ao lado da entrada fumando um cigarro e vendo aquela meninada criada a leite-com-pêra transitar de um lado para o outro fantasiada de roupas pretas, adereços prateados e maquiagem escura ao redor dos olhos. Não sabiam o que lhes faltava , não queriam saber o que lhes faltava , não queriam ter o que lhes faltava simplesmente porque precisavam acreditar que absolutamente tudo lhes faltava.
-Preencha essa ficha. - Disse o brutamontes ao (após meia hora) estender o pedaço de papel em minha direção. A ficha de candidatura a vaga solicitava dados como nome, endereço, idade etc. Um dos campos também perguntava: "aceita trabalhar fantasiado". Marquei o sim. Afinal de contas que diferença fazia? Não é isso que fazemos em qualquer trabalho?
Comecei a trabalhar na segunda. Eu era garçom e servia os drinks para a rapaziada gótica. As bebidas tinham nomes esquisitos tipo, Maria sangrenta, cabeça arrancada e coisas assim. A musica era horrivel. Faltava coragem, brio ou um desespero honesto. A pior parte era minha roupa. Eu trabalhava vestido com uma capa preta, uma gravata vermelha e uma peruca espetada. Me sentia ridículo como quando era obrigado a frequentar as igrejas protestantes do subúrbio para conseguir um beijo das garotinhas religiosas. Ao sair do trabalho estava moído física e psicologicamente, vocês não podem imaginar como aquela garotada bebia. Para chegar no ponto de ônibus eu tinha que passar por outros barzinhos onde um pessoal mais adulto procurava diversão. Numa destas passagens eu a vi novamente. Ela estava lá, sentada com um sujeito que, com certeza, não tinha que se vestir de palhaço para ganhar a vida. Muito sorridente e tranquilo, com aquele tipo de masculinidade óbvia no rosto que não deixa ninguém duvidar de que existe um caminho pronto para ele. Ela fingiu não me ver, menina esperta. Eu não consegui repreender um sorriso. De fato, apenas eu é que precisava vestir a fantasia para sobreviver, eles não precisavam, traziam uma de berço.

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