sexta-feira, março 20, 2009

Expurgo

A praia era distante e suas dunas de areia alva erguiam-se por toda orla até sumir-se no horizonte onde começava a cidade e sua loucura. Eu estava tentando fugir de algo que me perseguia há algumas semanas. Não tinha dinheiro, não tinha uma garota, não tinha uma filosofia, uma família ou qualquer outra estrutura sobre a qual pudesse montar minhas fortalezas. Os poucos trocados que me sobravam após pagar o aluguel não me garantiam o bastante para ir a um bar encher a cara sem ter o saco escrotal pressionado pelas botas de uma cultura que me era indigesta. Rejeição tácita daquilo que não nos oferece oportunidade de barganha. Rejeitava, rejeitava e rejeitava. Ficassem eles com seus pactos sombrios, seu cerebralismo faminto e seu punho de sangrento sucesso. Eu me esquivava para uma vida extremamente cinza por fora, mas ardente, pulsante e criativa por dentro, esperando apenas o momento oportuno para explodir em uma torrente de vida, que o silêncio iria coroar gargalhando nas minhas auroras. Diante dessa impotência sombria adquiri o hábito de acampar em meus finais de semana. Arrumava alguns trapos na mochila, pegava o ônibus e retirava-me para uma praia não muito distante, mas afastada o bastante para isolar-me da exposição aos ruídos horrendos que as pessoas normais produzem quando cessa o trabalho.
As pequenas elevações encimadas por coqueiros e cobertas em alguns pontos de vegetação rasteira separavam o mar de um longo e estreito rio com águas escuras. Do alto era possível ver seu caudaloso percurso, quase se perdendo no infinito. O som do mar era a soma do ruído de todas as ondas, grandes e pequenas, rebentando-se nas pedras. Ouvindo-as atentamente, separando o som aparentemente uniforme em suas partes integrantes, o meu pensamento louco e suas inquietações silenciava-se, punha-se apenas a observar. Em um ponto do rio as pessoas, turistas e nativas, banhavam-se e faziam barulho perturbando a harmonia do local com seus estridentes gritos. Em meio à imensa beleza daquela paisagem eles eram exceções, um pequeno tanque de confusão em meio ao imenso reservatório da paz e do silêncio. O momento as parecia pressionar, o encontro social lhes irritava a polpa do afeto e eles tinham que falar, falar e falar. Falar para justificar, para lamentar, para defender-se e permanecerem os mesmos apesar das injunções do destino.
Eu armei a minha barraca, tirando as roupas meticulosamente da mochila, separando os alimentos dos livros. Arrumei alguns gravetos e palhas de coqueiro secas, fiz uma pequena fogueira, fiquei fumando um cigarrinho enquanto o tempo passava por mim desdenhoso. A Tarde estava acabando e os turistas começavam a se retirar com seus carros para sua vida confusa e espremida entre preços e danos, apetites e cobranças, medos e desejos. Eu estava satisfeito, apesar de ainda sentir a coisa movendo-se por detrás das reflexões. Peguei minha uma toalha e me dirigi para o rio. A areia fina fazia atrito em minhas carcumidas sandálias. O céu estava ficando avermelhado e misterioso. Sozinho cheguei a beira do rio, sozinho nela sentei-me e fiquei constrangido ao perceber que estava interrompendo a vida em seu curso. Um casal namorava bem perto de mim empolgado. O rapaz estava jogando duro e a garota lhe dava todas as razões necessárias para justificar seu esforço. Linda como a essência da sinceridade calada, os cabelos morenos caídos sobre os seios polpudos que o rapaz sugava ávido, com uma lagrima caindo do olho direito. Me senti um criminoso, um facínora por ali me encontrar observando um mundo do qual eu tinha sido expurgado. Eles não me viram. Uma pequena moita e a empolgação brilhante do momento lhes asseguravam a continuidade autêntica de suas pulsões. Eu, calado e embasbacado fiquei tão mudo e seco de vergonha que me levantei e saí tremendo por dentro. A consciência plena de que não era viável. Na fuga esqueci uma de minhas sandálias, segui até o acampamento com a certeza do exílio e apenas um dos meus pés calçados.

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