segunda-feira, outubro 22, 2007

Outra sobre açougues

Eles falam muito na clara intenção de fazer o tempo passar mais rápido, e para quê?
Amanhã estarão aqui comigo novamente cortando arrumando e embalando carnes ou levando-as ao balcão onde os braços esperam seu pedaço de alcatra ou contrafilé. O frio também incomoda e os impede de ficar em silêncio um só minuto, mesmo eu geralmente misantropo e taciturno vejo-me obrigado a partilhar da algazarra e espojar-me na lama da imbecilidade coletiva. Os defeitos unem mais que as virtudes, é um fato, e a necessidade dobra os belos retratos que pintamos tão cuidadosamente.
O movimento repetitivo da embalagem de carnes me endurece os dedos, os rostos sem alma dos clientes ricaços me enrijecem a alma e bebem meu ânimo como um milhão de sanguessugas. Eu escondo-me debaixo de uma glacial indiferença, é a única maneira de esvair-me por completo.
O trabalho maçante deixa na minha mente um ranço de apatia e desprezo. O sujeito que trabalha do meu lado no final de uma esteira rolante pesando os cortes e levando-os ao balcão já perdeu qualquer traço de dignidade há muito tempo e só falta dar o pescoço para os clientes pisarem. Seu olhar meio vesgo não tem brilho e lembra alguém com síndrome de down.
Procuro ser o mais mecânico e artificial possível para com todos que vejo do outro lado do balcão e ignorar seus olhares sedentos, doentes, buscando meticulosamente o melhor pedaço, a melhor oferta, o bife mais suculento todos querendo sempre as doces polpas da vida, um bando de abutres beliscando a carcaça.
- Meu filho consiga-me um osso do patinho – Uma velha absurdamente pintada e embebida em litros de perfume tão enojante quanto sua voz suplica com olhar compassivo.
- Um momento senhora – A minha voz sai como sempre, mecânica e artificial e eles nem percebem. Já perderam há muito tempo à capacidade de diferenciar um ser humano de uma máquina.
Após várias horas de massacre da minha auto - estima desço para o refeitório, mas sinceramente meu organismo encontra-se em tal conflito com minha cabeça que quase não sinto fome, azar dele só tenho uma hora de almoço e a comida terá que descer assim mesmo. Metade do supermercado encontra-se almoçando e o inferno de Dante pareceria um jardim de infância perto da visão abjeta dos funcionários deglutindo seu repasto como bois complacentes. As mulheres não se diferenciam muito dos homens, exceto pelas formas. Suas vozes, brincadeiras e valores são os mesmos. Passa pela minha cabeça até a hipótese de mijarem em pé também e se masturbarem olhando revista de homem pelado. Não, isso não, devem sentir-se muito excitadas diante de um carro importado.
Após o almoço vou trocar de roupa para dar o fora e um chipanzé do meu lado reclama do custo de vida.
- Tudo aumentando! O gás, a luz, a água; o governo não toma nenhuma providência – Ele grita.
- Ora- eu falo sorrindo enquanto penteio o cabelo – Você não tem de reclamar. Jogo de futebol todo domingo, cervejada no sábado, trio elétrico na avenida, deveria estar satisfeitíssimo. Eu é que estou fodido já que não gosto de nada disso e ainda pago o mesmo preço.
- Então você não vive, é um vegetal. – Ele vocifera de olhos vermelhos em fúria.
- Eu concordo, mas cá entre nós, não é muito melhor ser um repolho, batata ou uma alcachofra que um imbecil?
Deixo a resposta no ar e caio fora antes que ele decida resolver a disputa na porrada, preciso deste emprego e o aluguel está prestes a vencer. O sol vespertino saúda minha liberdade efêmera e eu me esforço para tentar enxergar algo de bom e amplo por trás dos olhares estreitos e cruéis, mas só consigo enxergar o reflexo de minha própria insensatez.

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