terça-feira, outubro 23, 2007

Uma audiência

A entrevista foi marcada para as oito, porém chego mais cedo, com o específico propósito de impressionar pela pontualidade. Tolice, ninguém percebe nem mesmo a secretária loura de óculos e decote violento, gostosa demais para ser interessante, do tipo que não goza, pede o extrato bancário para saber o que dizer depois da transa.
Alguns caras chegam depois de mim para o teste, uns dez e todos com caras horríveis e gestos de exagerado cuidado ou descontração forçada. Cada vez que meu olhar se cruza com o de algum deles procuro desviar rápido, evito assim uma interlocução indesejada feita de representação e senso comum. O que teria eu para falar com esses caras? Devem ter esposa chata que reclama por causa do copo fora do lugar e pede separação todo domingo à noite, amigos que os convidam para a pelada de final de tarde e cervejinha barulhenta em pocilga de esquina ou pastor evangélico para vender paz de espírito e auto - estima. Não, conheço bem esses mal entendidos sociais, além de muito desagradáveis não acrescentam nada nem a eles nem a mim “ cada macaco no seu galho” filosofa a sabedoria popular com muita propriedade.
É curioso perceber como essas pessoas facilmente se aproximam uma das outras, após alguns minutos várias linhas de conversação foram estabelecidas. Depois de uma hora parecem grandes amigos, se ficassem mais uma hora acabariam marcando um churrasco entre suas famílias e apenas eu e a loura gostosa não seríamos convidados, ela pelo orgulho de seus dotes físicos e eu pela minha chatice silenciosa. A porta se abre e uma outra mulher, também linda, sai e fala algo com a loura tão baixo que não consigo ouvir. Todos se calam e ficam esperando começar o chamado para a entrevista. Eu sou o primeiro e ao ouvir meu nome levanto-me e tenho a impressão de que todos os olhares estão sobre mim, caminho até a porta e antes de empurrá-la respiro fundo quase chego a desejar que Deus me ajude. Meu desespero, todavia não chega a esse ponto.
A sala é sobriamente decorada e sentada na mesa a linda (por que só existem mulheres bonitas em agências de emprego?) de cabelo preso em rabo- de- cavalo escreve algo, ou finge que escreve:
- Com licença.
- Entre e sente-se, Sr. Leon.
Com todo cuidado eu puxo a cadeira e sento, tentando demonstrar tranqüilidade e esconder o que sinto a respeito de toda sua fingida cordialidade.
- Você é casado?
- Separado.
- Tem filhos?
- uma filha de quatro anos – A cada pergunta respondida ela baixa a cabeça e escreve algo; como adivinhar o que ela quer ouvir? Afinal de contas ninguém está interessado em verdades, numa agência de empregos, aqui o que importa é ser aceito ou rejeitado para o jogo de ratos, e eles fazem as regras.
- O que você espera desse emprego, Sr. Leon?
Que raio de pergunta é essa? Espero conseguir me alimentar dar a despesa de minha filha, pagar o aluguel e talvez tomar um vinho e fumar uns cigarros. Sei porém o que ela quer ouvir.
- Ora, o que todo mundo quer, um salário.
- Disso nós sabemos Sr. Leon, o que não sabemos é o que você espera que a empresa faça por você: ela sorri complacente e gesticula num gesto amplo como se espalhasse pétalas de flores, nesse exato momento minha cabeça começa a rodar. Preciso do maldito trabalho, a pequena precisa, mas preciso também não perder a noção de quem sou, se isso acontecer já era sanidade... Tenho que encontrar um meio termo.
- Olhe senhorita, sou experiente em diversas ocupações, domino bem a linguagem e não tenho medo de trabalho pesado, isso é o que tenho a oferecer, agora acredito que o que a empresa pode fazer por mim é me pagar pelo meu trabalho.
- Mas e seu desenvolvimento pessoal, crescimento profissional, promoções, carreira. A respeito de sua realização, você acha que a empresa pode ajudá-lo a atingir isso? – Ela me olha nos olhos sorrindo, eu levanto a cabeça respiro fundo e digo:
- Acho que não senhora, essas coisas pretendo atingir sozinho, isto é, na suposição de que sejam atingíveis.
A entrevista continua, ela faz outras perguntas e continua fazendo suas misteriosas anotações, mas o tom de sua voz muda e eu percebo que já não sou mais uma possibilidade. Ela emite alguns comentários sobre a vaga e o salário, com um certo desdém, e no final repete o conhecido adágio “não se preocupe, nós lhe ligamos” e me manda porta afora. Fim de jogo, não sou aproveitável por não estar dobrado o bastante para caber no bolso do patrão. Sem ganchos(será?) nas costas e sem dinheiro para o aluguel e para a desepesa da pequena. Na áfrica nesse exato momento crianças são devoradas por abutres, alguém está descendo de um helicóptero que custa alguns milhares de dólares em Malibu ao LADO DE UMA LOIRA PEITUDA, e tudo parece muito estúpido. Um imenso acidente, sem importância mesmo. Do outro lado da rua um sujeito em trapos caga de´spreocupadamente sob o olhar estupefato de respeitaveis cidadões. Arvores secas e sem gritos, ereções involuntarias e sem gesto, Minha hemorroida que começa a doer...onde estão os brigadeiros? sorrisos inefaveis? solidões desconhecidas pela minha rota errada? pelo meu bastão de fogo? As crianças sendo torturadas? maniácos na condução das coisas? e tudo andando como deveria desde o inicio especulado e o controle imovel que não há. Aumento minha compreensão dos mecanismos, acendo aquele cigarro já citado, entro no ônibus e a vida me refuta.

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