Um carro furioso quase me atropela e continua acelerando até perder-se nas curvas do bairro iluminado, a minha desatenção quase me faz passar desta para melhor ao divagar enquanto procuro pelo maldito endereço que a agencia de empregos me deu. A rua é iluminada por anúncios de bares, pizzarias, lanchonetes e motéis requintados e preparados para compensar todas as frustrações decorrentes do processo de assimilação social. Seus donos devem faturar alto devido a localização e a importância da diversão hoje em dia, e é até irônico que seguindo certa linha de raciocínio, a gente possa acreditar que a simples sobrevivência tão buscada por nossos antepassados se tornou, senão insuficiente, mesmo enfadonha, precisando de inúmeros subterfúgios para que não nos destruamos através do tédio. A vida facilitada se tornou repulsiva e foi preciso adorna-la para que se possa vivê-la. O luminoso do restaurante que procuro brilha na noite e vários carros tomam-lhe o estacionamento, é um destes restaurantes de refeição rápida onde todas (ou quase todas) as camadas sociais se unem em um sacrossanto abraço de fraternal digestão, amém.
Um gorila de paletó e walk-talkie na mão informa-me onde fica a entrada de funcionários. È difícil saber se pessoas como ele já nasceram de mau humor ou se é a vida que lhes faz isto, seu rosto se parece tão adaptado a grosseria que é quase impossível imagina-lo sorrindo. Entrego o encaminhamento na portaria e um sujeito aponta-me a sala do chefão. Eu entro no escritório com paredes impecavelmente pintadas de branco, quadros de arte abstrata (?) pendurados na parede e um ar condicionado de gelar a alma, supondo-se que se tenha uma e esse não parece ser o caso do narigudo com cabelo cortado em cuia caindo sobre a testa e olhos de rapina sedentos sobre a calculadora, o sujeito me lembra algum de meus piores pesadelos. A neurose generalizada permite que doentes como esse passem despercebidos. Na maioria das vezes são inofensivos (exceto para seus familiares e empregados) mais se houver uma guerra sujeitos assim são capazes de devorar criancinhas (literalmente, claro). Ele despeja sobre mim todo peso de sua retórica capitalista e o dispositivo de concordância instalado em meu pescoço é ativado, eu confirmo tudo que ele diz com gentis gestos de cabeça desempregada. Quando se dá por satisfeito ele me indica o lugar onde vestirei o uniforme.
Dentro da camisa social de gola apertada e gravata borboleta, me sinto como o arquétipo da estupidez e essa farda parece ter sido projetada com esse especifico propósito: tirar do individuo qualquer resquício de amor próprio ou até identidade. Um garoto já vestido de uniforme ,e apresenta a equipe e me dá o que ele chama de macetes.
- Cara, aconteça o que acontecer nunca discuta com o cliente-o garoto sabe como defender seu osso, admito.
- E se alguém te chamar idiota ou mandar você foder o cu de sua mãe?
- Basta respirar fundo e contar ate três, é isso ou rua.
- Valeu, essa vai para meu diário de guerra.
O menino apresenta-me a bandeja a ao talão de pedidos e devidamente armado vou à luta. O salão repleto mesas está quase lotado, um braço ergue-se na multidão a batalha começa. correndo de um lado para o outro ,tentando equilibrar a bandeja sempre cheia gostaria de não me incomodar com o aspecto das pessoas ao meu redor, mais isso e inevitável e a aparência repugnante de seus sorrisos artificiais ,a superficialidade que transpira de cada gesto, cada palavra, atinge-me em cheio e eu tento me esconder atrás de uma muralha de indiferença para não piorar minha própria neurose particular. Lá pelas três da manha já atendi a uns duzentos pedidos e o movimento começa a cair . Restam três mesas ocupadas e uma delas pertence a um homem de meia idade, cabelos grisalhos e camisa desabotoada acompanhado de uma coisa linda de longos cabelos negros caindo sobre os ombros,seios fartos, semi-expostos no decote e vinte anos mais nova que ele.
-garçom, traga dois x-burgueres e um suco de açaí- A voz do homem sai meio truncada, talvez pó- preciso de energia para traçar essa beldade- com o braço que envolve o pescoço da garota o sujeito lhe amassa um dos volumosos seios e ela empurra a sua mão dando um sorriso de capa de revista pornô. Após alguns minutos o pedido esta pronto e eu o levo ate a mesa dos dois.
-Aqui esta senhor dois x-burgueres e um suco de açaí-coloco os pedidos na mesa, simulando naturalidade é quando percebo aquele par de olhos insanos fixos em mim.
-Eu não pedi x-burguer nenhum, entendeu idiota, eu pedi hambúrguer, hambúrguer ouviu imbecil?- Ele da um safanão e o lanche voa na minha farda branca.
-Senhor-respiro fundo e começo a contar-deve estar havendo algum equivoco eu anotei o pedido e está correto, foi isto mesmo que o senhor pediu-olho para a garota esperando que ela confirme o que digo, inútil, de cabeça baixa ela lixa hipoteticamente as unhas.
-O equivoco é um idiota como você trabalhar aqui.
O sangue me sobe a garganta. A esta altura já perdi o emprego e não consigo encontrar um argumento convincente para não lhe partir a cara.Fecho o punho e concentrando nele toda minha raiva acerto bem no nariz do sicofanta que cai com o rosto cheio de sangue em cima da outra mesa.desamarro o avental e jogo em cima dele enquanto o silencio se estende de ponta a ponta do restaurante.A prostituta sai correndo com seus peitos maravilhosos enquanto abro caminho até a dispensa para pegar minhas coisas.O garoto que tentou me ensinar a contar e respirar fundo bate em meu ombro e diz:
-cara que soco!Todo mundo que trabalha aqui gostaria de ter dado aquele soco, esse cara vive torrando a paciência.
-É... Mais isso não vai me ajudar a pagar o aluguel, na verdade não tenho nem o do transporte.
-Te preocupa não, a gente gostou tanto do que você fez que ninguém se recusará a contribuir com uma pequena quantia.
Eu me recuso a aceitar e o menino sai. Termino de trocar de roupa e me preparo para dar o fora quando ele volta rindo com o dinheiro na mão .
-Rapaz, você é mesmo teimoso.
-Deixa de resmungar, pega a grana e dá o fora, a policia tá ai fora, sai pelos fundos nós te devemos muito. -meu orgulho se dobra e eu enfio as notas no bolso enquanto dou as costas sem agradecer, detesto despedidas.
As ruas desertas na madrugada escondem aflições e crimes que nenhum jornal se atreve a publicar, a vida das pessoas só é possível através de uma generalizada ignorância a respeito da maioria das coisas, ou eles não suportariam. Desço por um beco escuro onde mendigos dormem abraçados sobre papelões, quase me arrependo de ter batido no sujeito, era só mais um abutre defendendo sua carcaça, chego a um ponto de ônibus antes de chegar a uma conclusão e acendo um cigarro.
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