quinta-feira, dezembro 30, 2010

Wings of silence

Do not let me leave,
do not let me set boundaries
to defend me from emptiness.
Do not open the glass windows,
not light up the room lights
something is moving in the time
a fragment of pain in the dream
shining.
We will be there with open arms
will be together and unarmed
the uneasy silence of our wings
in fully understanding our limits.

quarta-feira, dezembro 29, 2010

Não-ser(sei)

Seria tudo mais fácil se a dor não enlouquecesse as pessoas,
Se a memória dos dias ruins fossem apenas imagens e sons
Acumulados na caixa óssea de nossas cabeças.
Seria tudo mais leve,
se na essência não fossemos nós todos
passado.
Se os choques e hematomas, os hábitos e comparações
Não compusessem um redemoinho imenso
Contra o qual é inútil nadar.
O medo e a perspectiva do medo, da queda
Da morte, da fome
Vergonha ódio e amor.
Na ciranda louca que nos faz o que somos,
Para sempre
e é inútil tentar escapar.
A única saída é olhar nos olhos da besta
Que avança sobre nossos jardins
E caminhar na direção de seus braços, sem pânico.
Para além de resultados e danos
Mesmo que isso destrua a quem amas
Mesmo que isso te torne um Deus.

terça-feira, dezembro 28, 2010

Feliz ano novo para vocês também.

Subi no ônibus lá pelas 21:00 do dia 31 de dezembro de 2010. Os fogos de artifício estouravam no céu de Salvador e o Paripe-Barra estava lotado. Algumas garotas conversavam sobre a festa, sempre bem baixinho, e sobre as expectativas do ano novo. Um grupo de rapazes agitados cantarolavam candidamente refrões suaves,e conversavam de modo educado uns com os outros. Todos estavam sentados e o motorista dirigia com cautela e muito satisfeito. Mas infelizmente acordei: um sujeito de dois metros esfregava sua virilha no meu ombro e alguém ouvia um pagode no ultimo volume no seu celular, um grupo de piriguetes gritava palavrões enquanto relatava detalhes de suas experiências sexuais. O ônibus sacolejava como um epiléptico conduzido por um motorista que parecia uma besta-fera. Tudo muito novo mesmo.

quarta-feira, dezembro 22, 2010

Verbete "natal" do códice tibetano. Especie de Wikipédia do Nepal.

Natal: festa desenvolvida pela religião cristã para substituir o culto de Apolo, divindade pré cristã, que era feito na mesma data. Não tem nenhuma relação com os prinicpais aspectos da religião cristã, cujos ensinamentos de seu fundador, um anarquista de nome Jesus Cristo, pregam a renúncia a vida social, a busca de riqueza, à familia e as tradições culturais. A maioria das autoridades budistas são unanimes em afirmar que o Natal é uma festa crucial para a cultura ocidental por alimentar o espiríto de concorrência. É esse espiríto baseado na inveja e na comparação como outras pessoas que irá desdobrar-se na festa seguinte, o Ano novo quando os ociedentais fazem planos para conquistar tudo aquilo que seus vizinhos exibiram no natal. (Ver verbete Ano Novo)

segunda-feira, dezembro 20, 2010

Tudo sempre pode melhorar.

Uma segunda doce e tranqüila. João Paulo estacionou o carro na garagem da clínica, lá fora o calor litorâneo de Salvador começava a elevar-se; dentro do automóvel o ar condicionado conjugado a uma suave melodia de soul fazia tudo parecer muito fácil. Desceu do carro, cumprimentou Jonas, o vigia, que já suava sob o uniforme azul anil e o boné. João Paulo subiu o elevador da clínica "Amor e Cuidado" com o mesmo sorriso satisfeito de sempre. Passou pela secretária que lhe entregou uma pasta com a ficha dos atendimentos daquela manhã.
-Quantos hoje? perguntou.
-Apenas quatro doutor Paulo.
-Hum, nada mal. Reserve mesa para mim no restaurante Van Gogh. Avise que vou chegar antes das 12:00.
-Perfeitamente doutor.
Deixou a valise sob a mesa, vestiu o jaleco, acomodou-se confortavelmente e se pôs a ler os prontuários. Fez algumas anotações em cada um deles e após tê-los lido respirou fundo, apertando o botão do interfone em seguida.
-Pode mandar a primeira paciente entrar.
A porta abriu-se após alguns segundos e uma mulher beirando os 30 anos e vestindo jeans e camiseta estampada entrou pela porta.
-Bom dia doutor Paulo, com licença.
-A vontade Cristina.
Não tinha grandes atrativos. Os peitos eram bem caídos, mais que a média nacional. Os olhos estavam emoldurados em duas grandes olheiras e as pernas também eram bem finas. Parecia acuada e com vergonha de existir. Era como tudo que fizesse fosse passível de penalização. Após todo preâmbulo de praxe ela deu continuidade a história que tinha começado na outra sessão. Cuidava do pai doente, seus irmãos homens estavam todos presos e a única irmã mulher era prostituta. Não conseguia arranjar um namorado e também era atormentada por pesadelos nada divertidos. Paulo acompanhava todo o relato em silêncio. Ele era atencioso, disso não resta dúvida. Imterrompia apenas para pedir mais detalhes disso ou daquilo. Era a 2º sessão da terapia. Muito cedo para um diagnóstico. Mas haveria um, claro. Tinha que haver um. As coisas podem ser melhoradas, sempre. Mas naquele dia Paulo não chegaria a descobrir exatamente como; ele iria pedir simplesmente que cristina continuasse prestando atenção em si mesma e etc.
Na garagem o vigia que cumprimentou o Paulo pela manhã se angustiava com a perspectiva do desemprego. Era como se tivessem implantado um roedor em suas entranhas e o bicho estivesse com muita fome. A empresa de segurança para a qual trabalhava tinha perdido o contrato com a clínica de Paulo. Jonas já passava dos 50 aos e sabia como era quase impossível conseguir um emprego nessa área com a sua idade. Além disso sua mulher tinha dado o fora com um sujeito mais novo e que ganhava bem mais. É difícil tirar a razão dela, Jonas era feio como um susto. As pessoas da clínica não conseguiam encará-lo quando ele estava sem boné. Uma acne selvagem havia devastado seu rosto durante a adolescência e o bruxismo tinha tornado os seus dentes parecidos com um serrote quebrado. Separado, com aquela idade e com aquela cara Jonas só conseguia sexo pagando. A noticia da demissão serviu como catalisador dessas e de muitas outras frustrações. Coisas dolorosas para as quais seu limitadissimo vocabulário não possuía imagens o bastante. Talvez Paulo pudesse tê-lo consertado, como certamente fará com Cristina (claro que fará!), se tivesse chance para isso. Mas ao final daquele dia o estopim aceso pela noticia da demissão chegou ao fim. Ás 17:30 de uma tarde quente em Salvador às pregações dos pastores não serviam, a esperança não servia, a cachaça vagabunda com os outros fracassados não servia e Jonas já estava muito cansado para tentar alguma coisa nova. Cansado...Cansado dos puteiros, das igrejas, das piadas com a sua aparência, do mal humor dos bacaninhas e sua maldita vida perfeita planejada na buceta de suas mães branquelas. Mas de que adiantaria atirar-se contra eles? No essencial ele continuaria Jonas...e por isso pela primeira vez ele utilizou a arma do plantão.

domingo, dezembro 19, 2010

Contornando o domingo

Acordou mas demorou-se bastante na cama antes de se levantar. Era manhã de domingo e um samba entrava pela janela do quarto junto com os primeiros raios do sol. Na letra da música, assim como no resto do mundo, nada de novo. Uma pessoa falando de outra pessoa que a primeira gostaria que agisse menos como pessoa e mais como objeto. Estavam todos separados irremediavelmente mas essas doces palavras sopradas com entonações tristes davam a impressão que tratava-se apenas de uma decisão pontual, de uma “ingratidão”. Algo mexeu-se e se revolveu na cabeça dele impedindo-o de permanecer deitado a apartado de tudo como bem gostaria. Foi até a cozinha e esquentou um café. Passou manteiga em um pão francês e misturou o liquido negro e quente com uma gota de leite e algumas colheres de açúcar. Foi até o computador e colocou Schubert. Sim, você tem motivos para ficar espantado, os tempos são mesmos muito loucos. Hoje em dia um fracassado como esse não só ainda está vivo como ainda tem um computador. Que civilização doentia, que espécie degradada permite que um membro tão apartado e inadequado prossiga com esse grau de sarcasmo? Bom mas ele está aí, e tenho que falar dele também, afinal os demais já tem os seus Paulo Coelhos e Zibias Gasparetos para lhes narrar a existência.
Contudo, embora existindo, esse elemento não iria durar muito. A civilização não está tão degradada assim. Muitas mulheres alimentadas no leite sadio dos bons costumes e muitos patrões devidamente nutridos de bom senso iriam no tempo certo garantir que a inanição de afeto ou de dinheiro dessem cabo do aborto tardio. No entanto enquanto esse dia não chega ele prossegue colocando suas aspas em quase tudo que lhe aparece. Terminou de tomar seu café abrindo alguns email’s e dando-lhes a resposta que deveria dar, e não a que gostaria de dar. Colocou a roupa suja na máquina de lavar e acendeu um cigarro enquanto o aparato mecânico fazia o seu trabalho. Não tinha vontade de fazer quase nada que pudesse de fato fazer. Seus poderes ficavam aquém do desejo lhe sobrava. O sol estava muito quente e as praias certamente estavam lotadas. As praças estavam cheias de velhos querendo ser sociáveis e religiosos querendo ser salvadores metidos a besta. A televisão estava cheia de coisas inomináveis que produzem terríveis formas de enlouquecimento massivo. Os documentários intelectualóides eram panfletos para jovens a procura de alguma causa pela qual se empolgar. Restavam as mulheres. Sim. Isso era certo, ele pensou. Olhou os eletrônicos classificados a procura de alguma coisa pela qual pudesse pagar. Leu o 1º anuncio:
“Gostosinha manhosa. Faço tudo. Danço para você uma sensual dança exótica. Massagens também...”
Pulou para o próximo. Não gostava dessa coisa de dança. “Que diabos – ele pensava- tem a ver dança com trepada?” Não entendia todas essas músicas com alusões a caralhos e vaginas. Trepar é coisa que começa e termina. Como lavar roupa, ou cagar. Toda essa coisa de envolver sexo com arte lhe parecia coisa de quem tinha problemas com a transa. E esse, pelo menos, era um problema que ele não tinha; ou achava que não tinha.
“Universitária, alto nível, alta linda de peitos volumosos e bumbum empinado. 120 a hora.”
-Universitária? Arrgh – Pensou - As experiências com elas não tinham sido das melhores. Podia imaginar o olharzinho arrogante de quem diz: “Logo, logo vou ter um diploma e vou escarrar em perdedores como você.” Não precisava disso, não, realmente ele não precisava disso.
Depois de algumas dezenas de anúncios percebeu que não havia um jeito 100% seguro ou agradável de fazer aquilo. Foi para o banheiro tomar um banho e o pau subiu enquanto pensava em coisas que já tinha feito há algum tempo atrás, quando aconteceram milagres doces e acidentais trepadas . Deixou a mão trabalhar e o fluxo de consciência entrou no compasso da ânsia por submergir no nada; respirou fundo e chegou lá. É verdade que o domingo não tinha acabado, mas ele ainda tinha alguns truques na manga.

sábado, dezembro 18, 2010

Beto da mula.

Então eu passava as tardes subindo e descendo pelas ruas do bairro pobre procurando um propósito. O velho estava cada vez menos sensato e meu irmão pequeno que ele também criava lhe dava muita dor de cabeça. Eu tinha entre 15 e 17 e nada do que eu conto deve ser enquadrado em um período maior que um ou dois anos. Minha vida sempre deu giros muito rápidos; dentro de um espaço muito restrito é bem verdade, mas largo o bastante para tornar meu entendimento de mim um caos de figuras sem continuidade. Eu andava e andava. Passava algumas horas na porta de um amigo, ia para a porta de outro; até que as mães os chamassem para os afazeres que mães e pais costumam cobrar de seus filhos. Eu não tinha esse problema. Ninguém, desde os 10 anos, me cobrava nada. Exceto dinheiro. Minha mãe por exemplo já havia sugerido que seria melhor que eu tivesse me capacitado nas artes do furto. Não com tanta sutileza, claro. Eu me revezava entre a casa dela e a de meu avô. Não pertencia a nenhuma das duas. Não sentia que tinha direitos sobre espaço algum. Apenas ficava por lá até que um deles me enxotasse. Aí eu ia para a casa do outro. Eu não trabalhava, apesar de já ter 17, e minha mãe nunca deixou de frisar esse fato. Dinheiro era muito importante e mais tarde quando se casou novamente ficou muito claro que filho era um adjetivo de pouca relevância para ela. O velho nunca dava dinheiro a crianças, e sempre garantia comida e remédio. Enquanto esteve são, pelo menos disso ele cuidou perfeitamente. Eu o chamei durante um bom tempo, de pai. Mas acho que nossa relação não foi muito parecida com nada do que tenho visto ao meu redor. Talvez meus tios, os filhos dele, tenham pensado em coisas parecidas algumas vezes. O velho era meio frio para essas coisas de família, e a velhice progressiva colabora com toda indiferença . Eu vivi num limbo boa parte de minha juventude. Sem metas, sem estímulos e entregue a devaneios e pulsões irregulares que poderiam ter me lançado na perdição. Pensando bem e uma baita crueldade dizer essas coisas de alguém. Dá a entender que se trata de um julgamento sumário e condenatório. Nada disso. As coisas são o que são, e as possibilidades só existem como pensamento. Possível foi o que aconteceu. O que não acontece demonstra ser impossível. Logo, condenar um conjunto de comportamentos ou fatos é estúpido.
Bom, as coisas eram assim. Meus sapatos furados que eu evitava tirar do chão quando sentava e minhas pernas fechadas na cadeira para não exibir os remendos em meus fundilhos. Não usava cuecas e a maioria das minhas roupas eram doações de parentes um pouco mais ricos que também estavam sempre muito pequenas. Aos 16 eu não havia ainda sentido o calor de uma vagina enquanto todos os outros amigos com seus escalpos femininos eram festejados em verso e prosa. Eu tentava me convencer de que possuía algo mais elevado que simples apetites carnais. Um poeta. Suave e gentil demais para um mundo feito de violência e conquista. Mas me masturbava até ferir a pele do pênis, tudo em nome da inocência e da virtude. Ás vezes traficávamos revista pornográficas com um rapaz mais velho. Dávamos o dinheiro e ele as trazia para nós. Quando o velho as encontrava em meu quarto dava grandes surtos de moralismo indignado. Todavia, as mulheres das minhas revistas eram sempre muito sem graça em relação às mulheres peitudas de seus calendários. Aquilo sim era coisa boa.
Às vezes eu me apaixonava. E sempre era muito triste. Talvez me divertisse com toda aquela tristeza... Será? Não, acho que não. Teria adorado se as coisas fossem mais fáceis, mas elas não eram. Algumas vezes eu atravessa toda a avenida suburbana para tentar dar uns amassos. Qualquer remota possibilidade de contato feminino era suficiente para me fazer andar quilômetros. Mas com a condição dos meus sapatos e de mim como um todo frustrava todas as expectativas. Um dia consegui através de alguns piedosos amigos, e eu sempre tive bastante deles, um contato mais intimo com a ninfeta mais linda de toda a empobrecida avenida suburbana. Era linda em tudo. Doce, com os cabelos compridos e sedosos como uma noite bem dormida e sem sonhos. Eu a amava com um amor casto, mas me masturbava terrivelmente fantasiando enterrar-me em suas carnes. Os amigos advertiam-me de que eu deveria fazer apenas isso, a cair fora. Ah, mas como é difícil ouvir a voz da razão quando se tem 17 e nunca se teve um corpo gemendo entre os braços. Uma tarde fui encontrar a garota sem avisar. Ao dobrar uma das esquinas próximas a sua casa a vi sendo levada pela mão por um sujeito de aspecto mesquinho que levava uma mula pelo cabresto na outra mão. Era um tal de Beto da mula, como fiquei sabendo depois. O cara tinha uma mula, e eu não tinha nada. Me lembro que na época foi uma barra. Hoje até me parece bem engraçado. Mas você não tem o direito de rir.

quarta-feira, dezembro 15, 2010

MInhas casas nada engraçadas.

Após me separar uma das coisas mais complicadas que encontrei pela frente foi ter que procurar uma casa para alugar. Uma vez que ela, por razões óbvias, não iria dar o passo decisivo para fora da casa própria eu tive que fazer isso, ou permanecer na Geena. Com o salário de fome que eu ganhava logo compreendi que não seria uma tarefa fácil morar com dignidade de aluguel. A primeira casa que aluguei (se é que merecia esse nome) era um fundo de garagem com uma boca de esgoto aberta que supurava bem na minha porta. Apenas uma sala, que funcionava como quarto e cozinha também, e um minúsculo banheiro apertados em um espaço escuro e repleto de baratas. Exagerado? Rs. Estou sendo otimista. Até os pesadelos Lá eram mais horrendos. Fiquei apenas alguns meses, não suportei, comecei a procurar outra coisa. Achei uma casa no subsolo de outra casa. Um pouco melhor. Essa era escura e úmida como uma cripta. Tinha baratas também, mas em menor quantidade. As coisas estavam melhorando aparentemente. Até que era um pouco aconchegante. Dava para ouvir o trepidar dos ônibus que passavam na rua acima de nossas cabeças e o auto-falante da rádio comunitária que tocava música evangélica e Roberto Carlos o dia inteiro.. Ficamos um par de anos nessa cripta. Resolvemos nos mudar para o centro. Queríamos viver com qualidade (Rs). Depois de muita biela encontramos uma Kitnete em um bairro pobre do centro da cidade. Muito Pequena também. Bem menor que a cripta. Quente. Muito, muito quente. O sol castigava por uma janelinha de dois palmos e não havia outra entrada de ar. Era poente e ao meio dia a sensação era de que morávamos em um microondas. Para completar havia uma pequeno antro bem em nossa porta que prezava pela música de bom gosto. Apenas a fina estampa da música popular baiana. Os freqüentadores também eram do mais alto quilate. O apartamento dava para uma série de corredores que nos levavam através de um S até a rua. Parecia-se muito com um Bunker da 2º guerra. Um dos portões dava para uma boca de fumo. O outro para uma avenida conhecida por tiroteios e estupros.
Pressionados por essas características da moradia resolvemos nos mudar novamente. Mais alguns meses batendo perna até achar algo que pudéssemos pagar. Encontramos miraculosamente uma casinha barata, bonita e recém reformada em uma rua tranqüila. Uma reflexo no deserto, um oásis? Nos mudamos. Tudo muito bom. Uma das épocas mais fecundas em produção intelectual para mim. Uma noite, porém, por volta das 3:00 da madrugada ouvimos os vizinhos chorando, gritando e reclamando. Imaginei que era briga de casal e voltei a dormir. Acordei novamente com o barulho do ventilador que caiu. Levei o pé em direção ao chão para me levantar, e qual não foi a minha surpresa AO PERCEBER QUE A CASA ESTAVA INUNDADA DE AGUA. Pulei da cama apavorado. Acordei minha mulher que começou de imediato a gritar também.
Corri para a sala, os móveis boiavam. A televisão, o monitor do P.C tudo boiava placidamente na água barrenta que continuava pressionando a porta da frente. Quando a abri uma nova torrente adentrou o recinto. A rua estava cheia de água. Os vizinhos tentavam desentupir uma boca de lobo. A casa dos meus sonhos era abaixo no nível da rua e a rua era abaixo do nível da rua principal. RS. Nunca havia descido tão baixo. Após o esvaziamento da casa (e da rua) me queixei com a proprietária que alegou não poder pagar os prejuízos. Iria abater parte deles do aluguel. Excelente solução! Isso significava que iríamos ficar presos a uma possível morte por afogamento para reduzir os nossos prejuízos. E depois eu que sou sarcástico.
Começamos a procurar moradia de novo. Andamos muito, muito, muito até enfim acharmos um apartamento que poderíamos alugar. Parecia perfeito. Bem ventilado, bem localizado. Por outro lado eu deveria ter desconfiado de que algo estava errado, mas não notei é claro. Mudamos-nos. No dia do descarrego dos móveis notamos que o proprietário tinha uma irmã louca de pedra. Continuamos sem desconfiar de nada. Um dia ela bateu em nossa porta para pedir dinheiro. Disse que o apartamento era dela e que o irmão não lhe repassava o aluguel. Detesto loucos quase tanto quanto detesto religiosos fanáticos ou até mais. Tive um insight meio bizarro na hora. Pareceu-me que rolava um lance meio incestuoso entre a louca e o irmão. Talvez paranóia minha. Bom, o fato é que isso se repetiu. Bastava perceber que havia alguém em casa que lá vinha ela pedir dinheiro e quando nós não dávamos ela gritava, xingava e ameaçava. Também cortava nossa água. Não conseguimos mais falar com o proprietário. Ele desaparecia nessas horas, e depois também. Em síntese. Desapareceu por completo e não atende o telefone. Sim. Isso aconteceu hoje à noite. Enquanto escrevo agora estou procurando uma casa para me mudar. Algo que seja normal o suficiente par não agregar novas linhas e essas história. Você tem alguma sugestão?

segunda-feira, dezembro 13, 2010

Almoxarife do absurdo.

Sentado sob a pedra do agora,
Eu fumo um cigarro de trégua
Enquanto revejo e escrevo.
Enquanto catalogo esquemas, enquanto mapeio
Conflitos,
Os carros passando na rua,
O sorriso de sobrancelhas erguidas,
As mãos unidas no gesto,
E a alma que quer ir para longe.
Quantas vezes já passei por aqui?
Caminho bifurcado numa alameda sem placas.
Ocorre-me que estamos caindo;
Do nada
Em nenhum lugar.
Agarrando-nos desesperados com lábios e dentes
Nas coisas, nos nomes, nos livros e em toda gente.
As unhas nos servem, nossa dor funciona, os golpes,
As frases, os deuses o ódio e a piedade
Artefatos usados nas praças e irmandades
ganchos e foices
Para agarrarmo-nos em outras coisas que caem.
Mas eu apenas me sento para catalogar reações,
Para prever artimanhas e decifrar essas coisas,
Enquanto você me fala de amor.

terça-feira, dezembro 07, 2010

Manual básico de ressentimento e mal-dizer.

Você é uma tempestade decidida
E eu sou um carvalho determinado e duro,
Encantam tuas luzes no céu a meia noite
Descem minhas raízes até um mundo escuro.

Prestam-te honras os ventos masculinos
Invejam-te os dotes frívolas amigas
Tens um carro, um Ipod, desejas casamento
Minha casca ressequida de uma guerra antiga

Nos temporais quando distribuis encantos
Na minha batalha o sangue empapa o chão
Você não nasceu para esse lado amargo
E eu não comprei entrada para sua aparição.

Você estala os dedos, bate o pé, exige concessão
Eu Quebro pedra com a testa, na espada um grito
Tuas prioridades são cobradas pela multidão
Minha dor se assemelha a um lindo infinito

sábado, dezembro 04, 2010

Pessoas

Pessoas despedaçam,
Pessoas não se esquecem,
Coroas de palavras adornam as avenidas
Por onde desfila a dor.
Pessoas caminhando,
Contemplado outras pessoas,
Gritando enlouquecidas por migalhas
De atenção.
Pessoas não partilham,
Com os punhos entrevados se combatem
Lançando em direção ao torvelinho a pura polpa
De um SI faminto.
Pessoas não desfazem, não retornam, não refazem
Continuam a cada dia uma velha ciranda de despojos:
“elas me deixariam calcinado
se eu ainda possuísse um pássaro”.
Pessoas não carregam girassóis no olhar,
Não rebrilham em distração
Não conhecem a magia de uma rocha nem a
Felicidade de um antigo tronco simples.
Coletânea de repetições leiloadas por leprosos cegos,
Armário das angustias
Caminho triste que trafego.

sábado, novembro 27, 2010

Concessão de ti

Eu queria apenas permitir-me um pouco de você,
Permitir-me a degustação plena de seu ser
A compreensão sensível do teu mistério imenso
No trêmulo contato de dois corpos simples.
Na infinita ternura de um toque violento
De uma caçada de felinos sorvendo força e medo,
Sem consciência ou ponderação de nada
Em alguns minutos de erro, divindade e sonho
e a dissolução seguida
de um gesto brusco e de invasão
E perda.
Eu queria, todavia, apenas me permitir você
Sorver de tua tristeza feminina, tua mácula sagrada
Em orgíaco impulso de ternura e morte
Entranhar-me em ti como um veio de ouro quente
Tatuado doravante em seu próprio espírito.

quinta-feira, novembro 25, 2010

Percorrer uma vida.

Há algo de heróico, em um leão caindo
Como um sol em chamas
E um malmequer em cacos.
Como a tela branca da perspectiva
Enlameada pela trama de insetos nebulosos,
Como a lágrima esquecida
Dos que Deram de si a polpa de uma alma
Ereta.
Há algo lmenso em um olhar de pássaro,
Em sua indecisão e morte eminente
No vacilo breve de tudo que levanta
E cai.
Há algo muito antigo e forte, esparso nas lâminas
De uma escama esguia
Que silenciosamente mata, existe em si e vai.
Há algo poderoso em um velho reticente,
Em um idoso sem certezas
em um suspiro de partida.
Há algo incomensuravelmente humano em dizer
Não sei.
Há algo incomum em percorrer uma vida.

sábado, novembro 20, 2010

Permanência na terra

A rua barulhenta como sempre me faz lembrar da substância da qual as pessoas são compostas. Precisava me aliviar um pouco, muitas dúvidas, muitas incertezas. A dor pode até passar, algumas se vão sem deixar vestígios, outras nos acompanham para sempre; estas últimas se entrelaçam com aquilo que nós éramos antes delas nos alcançarem com os seus meandros. Ao olhar o rosto de uma pessoa você pode ter um pequeno mapa dos assaltos que a vida fez a uma alma, e as deformidades que tais golpes engendraram. Você vê uma criancinha sorrindo: Ainda não tem dores, ainda não recebeu os golpes, ainda não foi submetida as pressões e danos, exigências e entalhes, castrações e perdas. Em seguida você vê um adolescente: forja suas armas, testa novos esquemas para evitar o horror que ele já conhece. Procura estratégias para se fazer valer. Fortalece as suas posições através de conluios e associações, depreciações de coisas diferentes e as vezes uma certa crueldade. Então você vê um velho: a peça acabada, convicto das suas convicções, moralista até a raiz de sua medula antiga, as vezes invejoso daqueles que gozam o que já não pode, emprenhado em fazer a roda da dor seguir o mesmo curso, com todos os entalhes do destino gravados em sua face que reflete algumas vezes a ternura de um por do sol após uma batalha inútil.
É sempre assim quando me ponho a caminhar. Não importa muito o lugar para onde vou, meu caminho e sempre recortardo pela compreensão incômoda das pessoas que me atravessam o caminho. Com um emprego estável eu talvez não trouxesse a cabeça tão inquieta de reflaxões.As vezes sinto o dedo de velhas tragédias folheando novamente o livro desta breve vida. Em um pais tão fartamente repleto de perigos e de insanas coisas se passando a cada esquina a pobreza se parece muito mais com uma Geena assustadora. Contudo, não dá mais para prosseguir com esse desabafo tolo. Meu vizinho está despejando embaixo da minha janela alguns milhares de litros de música baiana. O mal cheiro da sexualidade reprimida, e portanto pútrida, em forma de estupidez verbal torna o ar irrespirável. Preciso levantar-me, fechar da janela e chamar Chopin para melhorar a atmosfera.

quarta-feira, novembro 10, 2010

Tenho sido.

Tenho divagado, temido e suspirado.
Amado um pouco menos, compreendido um pouco mais,
Olhado a cor das coisas densas e me retirado através
De alguns discursos.
Sido jogado de um lado para o outro,
Como um rápido corcel a mercê do risco.
Enfrentado algumas obrigações, livros de estudo, noturnos de Chopin
e alguma sensação de falta de propósito.
Sobretudo eu tenho sido apenas um,
ou dois talvez e raramente três.
Tenho tido mitologias desastradas e projetos frágeis
Folhas de crepom para um jardim de acácias
E alguma poesia vaga saltando do meu peito.
Narciso assombrado com mudança e fome,
Penumbra de questões e afeto inconcluso.
Sobretudo permaneço de pé para o poente
Um peito forte estremecendo em lutos,
Um olhar cinzento que rebrilha e apaga,
Uma aurora clara que irá me concluir sem sustos.

quarta-feira, novembro 03, 2010

Viver é estar em perigo..fácil falar!

Que brincadeira mais sem graça. É a frase que ecoa em meus pensamentos sem cessar. Com a maldita carta que avisa sobre o cancelamento do meu contrato eu conjecturo enquanto atravesso o passeio do centro da cidade me esquivando dos pedestres, contando centavos, conjecturando alternativas...reproduzindo na tela do pensamento as aflições da miséria que conheço muito bem. Um senhor de bengala me olha bem nos olhos e acena com a cabeça, os perdedores se reconhecem, eu penso. Tem ainda os orgulhos da condição masculina que é preciso sufocar para pedir favores, a disposição para o trabalho que não basta, pois o fator sorte nem sempre está a nosso favor. Sim. Você não vai entender o que é isso até ter passado como eu pela reivindicação silenciosa da necessidade. O sinal fechou e agora posso atravessar. As pessoas correm de uma lado para o outro, parecem saber onde estão indo. Planejar, planejar e planejar apenas para descobrir depois que os seus planos valem menos que um cigarro molhado que caiu no esgoto, pois o fator decisivo, a oportunidade não lhe favoreceu. E você é jogado de um lado para o outro, indo e voltando, dando um passo a frente e dois atrás, tentando se convencer que as coisas estão indo em frente mas na verdade tudo lhe parece não passar de uma satânica piada de mau gosto. E no final eles tiraram até o último resquício de dignidade, aquele que lhe fazia acreditar que tudo é uma arapuca e é melhor nem dar o primeiro passo. Agora eu tenho que explicar para minha filha que não vai haver natal esse ano. Que o peixinho dela também não terá ração. “
-Não minha senhora, não quero um folheto evangélico.
-Vai com Deus então
Ela responde como se estivesse me rogando uma maldita praga. Como se isso fosse necessário. De repente sinto uma súbita vontade de dar uma baita gargalhada. Estarei enlouquecendo? Quem é que vai me responder isso? Os psicólogos almofadinhas que nunca passaram fome? Parado no ponto de ônibus eu espero. Ouço as conversas deles que não me dizem nada. Não faço parte do jogo e se eu pudesse pular fora desse ringue sem arrastar meu girassol comigo já o teria feito há muito tempo. Mas já que eu não posso, seus malditos duendezinhos dos infernos, vamos ver quem é mais durão, vamos ver o que vocês trazem em suas estúpidas camisas, estou de pé para assistir seus jogos de terror com um pai atormentado e sua criancinha.. vamos ver do que vocês são capazes seus canalhas!

segunda-feira, novembro 01, 2010

Only Walking

Ele vai caminhar pela praia de Itapuã como tantas vezes fez pela orla empobrecida e suja do bairro onde passou a maior parte da sua vida. Não sabe muito bem por que isso lhe provoca um inominado bem estar, nem por que não consegue tornar tal caminhada um hábito. Talvez sejam surtos de solidão feliz que o acometem de forma sazonal, mas ele não pensa nessas coisas. Apenas pega seu boné e sai. No caminho ele vai prestar atenção em coisas que ordinariamente lhe são veladas por temores. Vai observar o semblante das pessoas, vai notar os pequenos vincos em suas testas e compreender, sem no entanto explicar, a aflição de suas vidas. Isso lhe vai lembrar as suas próprias aflições. Ele vai, uma vez ou outra, deixar-se arrastar para o interior confuso de seus medos e desejos. Vai dialogar consigo, exortar-se a adotar uma certa atitude frente ao mundo, vai refutar algumas argumentações de conhecidos e desconhecidos e vai explicar a fantasmas que eles estão errados e porque. Ele também vai rolar na lama de seu passado triste. Vai sentir pena de si mesmo. Vai catalogar cada pequeno evento que o faz superior ao mundo, ou então, simplesmente vai afirmar a própria incompetência para viver. Contudo, nem sempre será dessa maneira. Em alguns momentos breves em que o tempo para, ele apenas estará lá. Observando sem catalogar, sentindo sem acumular, amando sem reter ou segurar. Ele talvez chegue a perceber-se apenas diluído na trama confusa de momentos sucessivos, sem essência, conteúdo ou missão. E as pessoas passarão por ele e ele passará por elas. Depois irá retornar a sua casa para falsificar a vida escrevendo uma vez mais.

sábado, outubro 30, 2010

Mesa de pôquer

Abri a porta, e meu olhar correu para os papeis que me lembravam de obrigações acumuladas. Eu estava protelando o inevitável, evitando o atrito e me refugiando em desculpas. A grana já foi mais curta, a responsabilidade e o medo de fracassar também, porque antes eu simplesmente não tentava e via certa nobreza nisso. Deixo a pasta no chão, sob o tapete e corro para o banheiro. Calor dos infernos. Todo mundo com uma lata de cerveja nas ruas, as praias lotadas. Os machões óbvios e assustadoramente ressentidos aproveitavam-se do coletivo lotado para roçar-se nas nádegas das senhoras que só queriam chegar aos seus destinos. Em algum momento eu vou compreender o que isso quer dizer, a estupidez, digo. Essas multidões agitando-se, berrando, sofrendo, em torno de um grupo de sujeitos vestidos com uma camisa de determinadas cores, cuja organização em um certo padrão e somadas a um nome qualquer tornava-se a manifestação de algum tipo de deus . Talvez muita ausência de sincronia com meus contemporâneos seja o meu diagnóstico. Veja, tem essa sexualidade exacerbada associada aos resquícios pútridos da moralidade finda. Sim, o gozo; todos querem. Mas que raios vêm a ser essas palavras que todos eles carregam em seus beiços medonhos? Deus, fidelidade, compaixão, fé? Se há um deus inda vivo, já não seria ele, como afirma Isaac Bashev Singer, o Deus do gozo? Sim, para pessoas honestas talvez. Mais os labirintos tortuosos de meus vizinhos, atormentados pela sombra de pais também insanos, não o pode admitir.
Uma chaga de vazio tem seus méritos: não supura e não mancha alheias camisas. Mas eles ficam aí no caminho. Tortuosos, nefastos. De outra maneira hilárias são as contradições. Uma conhecida que defendia o amor livre a maldizia o casamento, como se para alguns destinos inviáveis casar não fosse a única chance de uma aliviante trepada vez ou outra. Uma outra defendia a verdade e apenas a verdade sobre toda e qualquer coisa, mas era fraca e fugia da verdade de si, não falava desse assunto constrangedor. Ainda conheci muitos outros tropeços, alguns meus, inclusive. Sim, não me absolvo, e nem isso é absolvição. Um dia farei uma lista de todas as trapaças que presenciei nessa mesa de pôquer. Eles pensam que me estão me enganado. Por detrás dos olhares eu rolo de rir, mas isso não me compensa por nada. Estou preso. Sem chance de fuga. Atado a esses ardis e sem tribunal ao qual recorrer. No sonho da noite passada eu era um presidiário. Não lembro qual tinha sido o delito, mas francamente pouco importa. Não havia mais lugar para mim junto a mesa de pôquer. Eu agora era alvo e ferramenta para o exercício de pequenas vinganças, por pequenas pessoas. Jogado daqui para ali, ordenado e esmagado como um nada desnudo diante de quem possuía o controle. Tudo muito confuso. Tudo uma imensa piada. Preciso me concentrar. Saí do banho, peguei os pápeis e comecei a trabalhar em mais uma etapa. Uma conspiração se prepara, posso pressenti-la chegando. Vou olhar a onda de frente e sorrir.

quarta-feira, outubro 20, 2010

Trecho de entrevista com Hemingway

Pergunta: Na sua opinião, qual o melhor treino intelectual para o aspirante a escritor?Hemingway:Digamos que ele estivesse pensando em sair e se enforcar, porque chegou à conclusão de que escrever bem é tremendamente difícil. Neste caso, deveria cortar a corda sem piedade, de forma a se ver obrigado, pelo seu próprio eu, a escrever o melhor possível pelo resto da vida. Pelo menos teria a história do enforcamento para começar.

segunda-feira, outubro 11, 2010

Carta para Indra

"Quando casamos nem pensamos nos filhos, mas quando eles nascem percebemos que tudo só aconteceu por causa deles"
Herman Hesse

Lembro-me de quando chegaste. Tinhas alguns centímetros e uma expressão sonolenta e assustada. Algo doloroso começou a funcionar em mim ao perceber que algo tão frágil tinha vindo parar nesse lugar cruel e confuso, e que justamente esse algo precisaria de mim até o dia em que fizesse parte desse lugar também. Mas até esse dia és linda, como eras quando chegaste. Sorrindo sempre. Era mágico perceber como não tinhas coisas de fazer pirraça, ou de revoltar-te contra um “não” vindo de nós. Gostavas de todos os brinquedos, de todas as caretas estúpidas que eu fazia e de pular sobre minha magra barriga enquanto eu tentava dormir depois de uma noite lavando o piso do supermercado. Seu pai muito atormentado com tudo talvez não tenha deslumbrado-se bastante e por isso agora tenta recuperar esses momentos nessa suposta carta. Ias crescendo muito rápido, sempre inteligente e bem humorada. Todos se acercavam de ti como
se fosses uma espécie de fonte mágica da alegria. Gostavas, sobretudo, de rasgar os meus velhos livros, ou de simplesmente exercitar seus dons de artista sobre as páginas de velhos tratados de budismo, teosofia e outros delírios com os quais tentava encontrar uma resposta, quando ela estava ali diante de mim. Até compus uma canção secreta que apenas nós dois conhecemos, lembras? Antes gostavas quando eu a cantava, agora não gostas. Achas ,com razão, que seu velho chorão palhaço está fazendo-te de bebezinho outra vez. Não têm importância. Eu a canto em silêncio para mim toda vez que penso em você minha filha. Uma dia talvez os barulhos da cidade engulam essa canção em meus lábios definitivamente, ou na procura de teu próprio caminho te distancies em demasia para ouvir-me cantar. Tal é o curso das coisas. É sábio aceitá-las, eu acho. A mim, basta-me saber que um dia eu a cantei, e que soube reconhecer ou pelo menos tentei, o presente mágico do acaso que foi você existir para mim no período em que o acaso o permitiu.
Amo-te
Seu pai.

sexta-feira, outubro 08, 2010

Redenção para Juan Leon

Juan Leon meu filho,
Os dias te condenam ao atrito.
As horas lançam sobre ti a dúvida acerca
De Como conseguir o alimento.
E sabes de tantas coisas que para nada disso servem de resposta.
Os sete corpos astrais, as três correntes de Amithaba, as causas
E efeitos que seu avô berrava,
Nada disso te responde.
Seu coração é um oco imenso, o amor desistiu de ti faz tempo
As pessoas passam por seus olhos como pálidos reflexos
Como algo sem substância ou verdade.
Já nem consegues dar esmolas, desaprendeste compaixões,
Acumulaste palavras e perguntas
E teu girassol se afasta em um rodopio ensandecido.
Estás muito velho Juan Leon,
Viveste em demasia para uma vida tão pequena
Com pessoas menores ainda.
Até o vinho vagabundo que desce agora pela tua goela
Não é o que precisas para cauterizar
Suas feridas.
Tua ilha afundou, não há retorno
Juan Leon

Estás velho em demasia Juan Leon,
Billie Holiday talvez entendesse”
Bob Dylan talvez entendesse”
Buk, Hemigway, Fante talvez compreendessem”
Não queres admitir que o jogo acabou,
Que tudo esteve errado desde o lance inicial
Que não vai haver prorrogação,
Nem o beijo do esquecimento para sua redenção.

quinta-feira, outubro 07, 2010

Um filme?

Achei tinha que perdido alguma cena importante do filme enquanto tinha ido ao banheiro, pois depois que me sentei na poltrona todos acompanhavam a trama com interesse e apenas eu estava entediado. Uma garota linda e bem nascida driblava mil e um contratempos para casar-se com um garoto também lindo e bem nascido por quem ela tinha se apaixonado. Haviam também as situações inusitadas, os gestos ridículos e mal entendidos, que faziam todo mundo rir menos eu; sentia vergonha ao ver as pessoas submetendo-se gratuitamente àqueles papéis. É claro que eu sabia que ficar sozinho é uma coisa amarga, mas fazer da fuga dessa dor algo tão grandioso me soava patético. Saímos do cinema e voltamos para nosso bairro pobre. Os rapazes com suas namoradas foram namorar e eu que não tinha uma voltei para os livros e a masturbação. É claro que eu queria ter uma namorada também, mas não achava que isso iria transformar minha vida num passe mágica como o filme sugeria. Particularmente tinha uma garota de quem gostava muito (era a única da minha rua e eu gostava de quase todas dentro de certos limites mínimos que eram aliás bem flexíveis) e que com toda razão não dava atenção ao menino esquálido e mal vestido que nunca ia as festas por que não tinha roupas apropriadas em 1980. Também não me esforçava para driblar a rejeição, não parecia valer muito a pena correr o risco de uma rejeição quando eu próprio já me rejeitava tanto. Por outro lado, o esforço em superar ambas as rejeições( a minha por mim mesmo e a hipotética pela garota) me parecia exigir um tipo de energia que já estava comprometida totalmente com a riqueza inefável de meu lindo mundo interior. Com o tempo esse mundo também foi ficando cada vez mais vazio. Acabou sobrando um tanto de energia residual, que vez por outra utilizo de diversas maneiras de acordo com as exigências do contexto, mas ainda me sinto diante da vida como fiquei naquela sala de cinema. Talvez eu realmente tenha perdido alguma cena importante.

terça-feira, outubro 05, 2010

O PEQUENO VAGABUNDO- William Blake

O PEQUENO VAGABUNDO- William Blake



Ó mamãe, mamãe, eis que a Igreja é tão fria,

e é bem mais quentinho na Cervejaria;

tu sabes que a isso já me acostumei,

embora tal uso não seja de lei.



Mas se fogo e assento nos dessem na Igreja

e a beber um gole da boa cerveja,

era canto e reza todo santo dia,

e ninguém da Igreja se escafederia.



E o Pastor pregava, bebendo e cantando,

e todos alegres, quais aves em bando;

e dona Abandono, que a igreja não deixa

não teria filhos, nem jejum, nem queixa.



E Deus, como um pai, bem contente vendo

seus filhos como Ele no prazer vivendo,

não teria brigas com o Diabo e a barrica,

mas lhe dava um beijo, um trago e roupa rica

segunda-feira, outubro 04, 2010

Leito de Procusto

Conheci algun anos atrás um casal de amigos. Gostavam-se em demasia. Eram cooperativos e parceiros, gentis um com o outro e bastante dialógicos. Discordavam apenas em um ponto, mas por azar, justamente sobre esse ponto as civilizações resolveram erguer os tratados de controle que nos ensinam nas igrejas. Ela considerava muito natural dar seu corpo a outros, e não somente seu corpo, mais uma parte pequena de seu espírito também. Na parte maior e mais contínua ele reinava absoluto, isso para ela era tudo que significava a palavra amor. Contudo ele não pensava o mesmo e essa relação assíncrona caminhava sob o fio do fim eminente. Ela não conseguiria abrir mão do prazer inocente e franco do leito, ele não podia abrir mão do último território no qual sentia-se exclusivo e maior que os outros mortais. O que o afligia? A idéia de que ela poderia ser mais feliz com outros do que com ele, ou a sensação de que ela tinha um tipo de poder sobre os demais que ele próprio acreditava não possuir? Afinal, suas insônias eram o reflexo do temor da perda de algo que se tem em alta conta ou tão somente a inveja por uma liberdade que ele mesmo nunca teve? Uma pergunta complexa e dolorosa para ser feita a alguém que se contorce no inferno do ciúme. Os dias prosseguiram para aqueles dois nesse mesmo ritmo, ela recorria a mentira elegante para poupar o seu querido das verdades que ele mesmo rejeitava ( e quantas vezes ela tentara em vão prepará-lo para elas) e quando algo vazava para fora da ilusão que ela lhe dava de presente toda revolta do rapaz explodia em cólera e fúria. Devido a mudanças comuns a vida dos mortais nunca mais os vi. Não sei como terminou a história. Mas tenho algumas hipóteses. Talvez ela tenha resignado-se pelo medo da velhice e aceitado os impositivos morais de nossos bisavós, fazendo-o então um homem feliz e honrado como ele sonhava ser; ou talvez tenham se separado, e nesse caso fica mais difícil prever o que aconteceu depois. A vida é um leito de Procusto, paga-se um grande preço por exigir medidas exatas para as coisas.

quinta-feira, setembro 30, 2010

Mais uma sobre os 80

E foi a minha primeira festa. Meus tênis eram o que sobrou dos tênis de meu primo, pintados para encobrir o desgaste. A música era o melody new wave década de 80 com aquele globo de prata no teto pendurado. A camisa era um tanto encolhida pois já a utilizava há uns 5 anos. O amigo que me conveceu a ir era o Angelo. Um sujeito enorme, bom de briga mas por outros motivos tão quebrado quanto eu, ou mais. Hoje é pastor evangélico...é, acho que ele era bem mais partido que eu mesmo. Mas ele se dava bem com as garotas pelo menos, e não tinha medo da face carrancuda dos caras da favela. Eu tinha medo de tudo. A festa rolou e eu fiquei no canto todo o tempo. Aos poucos as pessoas foram se armando, como dizíamos na gíria da época, e eu fiquei parado ali no canto. Nem dinheiro pra encher a cara eu tinha. No final havia uma garota parada lá no canto. Bem feinha. Ela me olhou e me viu ali parado e sozinho. Há aquela altura o Angelo já estava com as calças nos joelhos. Eu estava esperando uma deixa pra ir embora, talvez ler o evangelho segundo o espiritismo antes de dormir. Mas ela se aproximou e me chamou pra dançar. Não imaginava sequer como se fazia aquilo. Mas tentei. Ela desistiu de me fazer tentar saímos e nos beijamos. O beijo dela parecia um copo de vidro frio e oco, mas os seios eram fartos. Para um adolescente aquilo era importante. Não fui amamentado quando criança e essas coisas marcam. Ainda fiquei com a Patricia alguns meses. Não fizemos sexo. Ela era virgem e jogava futebol o que tornava seus músculos e demais tecidos muito resistentes para um aparelho ainda em fase de testes. Terminamos quando conheci a evangelica que me deu a primeira ejaculação intra-orgânica de minha vida. Também rasgou as minhas costas de lado a lado. Mas isso é outra história.

Arte

Uma antiga arte que perdi,
Um talento heróico esquecido entre as vassouras
Que eu usava para varrer as pontas de cigarro
E os sorrisos de desdém das mulheres lindas.
Uma vontade nobre que caiu em algum lugar
Entre os horrendos cagalhões enormes que eu via toda noite
Depois que suspirava fundo, colocava a farda
e me relembrava do que me levou até aquele ponto.
Caído entre aqueles baldes, perdido no quarto da despensa
Coberto de sabão em pó e lama
Olhando em volta e tremendo
Talvez relendo lao-tsé.
Essa coisa breve, esse sopro lindo
Ficou lá.
Toda noite quando chego em casa,
Quando ligo a televisão, o computador, atendo o telefone
Vou dar aula na universidade onde garotos sadios e amados
Esperam que eu lhes diga
Eu lembro que aquilo está lá
Pensando em mim.
É uma vertigem...
Isso quase me dá força
E quase me destrói.

quarta-feira, setembro 22, 2010

Sigo

Eis uma palavra sobre o que eu penso de tudo:

Eu sigo.

Completamente imerso na trama das coisas,

o mistério para mim é o som de uma vida que se esconde do incerto

E a morte uma flor sem perfume.

As coisas chegam e se vão, a dor é bebida nos goles

A alegria é permeada de dúvidas

O atrito dos dias é uma coisa confusa.

Quando as palavras fantásticas deixaram

De ter sentido para mim?

Amor, Deus, tragédia, infinito,

Sílabas organizadas sobre o desejo

De ser algo mais ou ser tudo.

Um desejo que não me basta,

Sigo em frente, não me iludo.

segunda-feira, setembro 20, 2010

Metempsicose Cínica

Um dia eu fui um monge em Bombain

E me contorcia entorpecido de Alah

Dava corpo em verso as visões, Rishi

E tentava superar as contradições do meu Torah

Também já me vesti de Dharmapada

E caminhei orando do Tsé até Ganges

Transportando Sunyata e Amitaba

Adorando Brahma que tudo em si abrange

Já fui sacerdote silencioso na Alemanha

Ouvi Ekhart pregar os seu louco sermão

Bebi na América o suco de uma planta estranha

Que deixou nas portas da extrema comunhão

De tanta andança, tanta busca, sequei o meu ardor

Tomo alguns goles, crio os filhos, sigo em frente

E se algum cristão me aparece louvando o senhor

Sorrio, e me afasto da criança inconseqüente.

terça-feira, setembro 14, 2010

A vida pode ser uma coisa estranha que nos acontece

Ou que nós somos.

Um surto de cotidiano que seguimos, uma trajetória cega que sorrimos

Uma queda pesada no porão.

Quase sempre é nada disso, muito menos

Meros acenos sorridentes em direção ao sol poente

Que nos ignora como faz a multidão.

A vida pode ser a coisa errada que acontece a um menino

Maltratado, a uma mulher abandonada, a aquele velho que mora

Na escada

O único caminho que nós conhecemos,

Um golpe de pistola que assusta

Um sono doce que aos poucos esquecemos.

A vida pode ser nossa quinhão de pena, de medo, de desvelo,

De bravura

O monstro escondido as escuras

Que nada mais é senão nossa verdade

Para redimir Friedrich

Mas dizei, que poderá ainda fazer
uma criança, que nem sequer pôde
o leão? (...)
Inocência é a criança, e esquecimento;
um novo começo, um jogo, uma
roda que gira por si mesma, um
movimento inicial, um sagrado dizer
“sim”.
Sim, meus irmãos, para o jogo da criação
é preciso dizer um sagrado
“sim”; o espírito, agora, quer a sua
vontade, aquele que está perdido para
o mundo conquista o seu mundo.”
(Nietzsche, 1885: 44)

Estar vivo

Estar vivo é aceitar a sentença do instante
é ter sopro de sonhos, é imitar o imenso.
Estar vivo é aceitar que não somos os outros,
não olhar para os lados
nem atormentar os caminhos com tenebrosas canções.
Estar vivo é ter o condão de enganos, é ousar-se a transgredir
e não carregar consigo o remorso.
Estar vivo é olhar a estrada sem pensar em chegadas,
em combater sem descanso e descansar sem rancores
dar-se e tomar-se com os mesmos silêncio
pois quem muito fala
precisa convencer a si mesmo que vive.
Viver é dedicar-se ao declinio
aceitar a fração de deleite
e buscar no torpor o olvido
mas nunca deixar-se consumir
pela inveja.

Quebrado

Tudo está quebrado,
como quebrados estão nossos olhos
insônes.
Nosso passo passado de amizade
perdida
as mãos para a vida e o resto.
Tudo está definitivamente
quebrado.
Nada para reunir os pedaços
no filme parado
a bala ainda voa
para a testa
mas todavia ninguém morre na festa.
Tudo quebrado
Os céus estão quebrados
as montanhas quebradas
o sorriso das crianças que não nasceram
estão todos quebrados
tudo
tudo
tudo
quebrado.
E os pedaços se perdem na sucessão
dos instantes
entre sonhos
delírios
flagrantes
levados na ventania
enquanto tento apenas me erguer.
enquanto também precisamos viver.
mesmo fingindo que não está
tudo quebrado.
Reduzido a poeira arrogante
que exige bem mais
do que nunca foi o bastante.

sexta-feira, setembro 03, 2010

Rio

Ela agora encontra-se em algum ponto

Entre o verbo caído e a sentença sem chão

Entre o contexto inscrito nos medos

Entre o oceano a o infinito do céu.

Eu penso nela que nem face possui,

Não tem ancas ou mechas mais inebria

O que penso,

como um tormento de sentimentos sedosos

com dedos de lindo futuro.

Ela agora tem meus sonhos sem forma

Sem memória ou zelo,

Telas cobertas de olvido

onde se desdobra pra mim.

Transita, equaciona e se divide

Em rostos, palavras, temores,

Questões inacabadas

e uma dor de ser eu.

Uma folha de prata refletida

Na língua fina do rio

Onde deslizas

Em outra direção.

sábado, agosto 28, 2010

Nem Jung explica

Cheguei em casa quebrado. A cabeça e os olhos doíam porque a lente direita do meu óculos estava arranhada. Joguei uma água no corpo e entornei meia garrafa de vinho que estava sobrando na geladeira. A casa vazia, a mulher no trabalho e meu vizinho pouco sapiente com o rádio desligado, sem ouvir reggae ou samba. Na televisão era mais do mesmo. Nada que pudesse servir para uma punheta. Mesmo assim consegui arrancar uma das boas, minha memória nunca me deixou na mão, ou melhor, sempre me deixou. (Hehehe) Tombei na cama e comecei sonhar. Eu estava voando. Lá embaixo as pessoas me apontavam e riam. Eu não achava graça nenhuma. Estava de camisa e sem calças e um vento noturno bem friozinho me gelava os testículos. Atravessei algumas ruas assim, feito um balão imbecil balançando pra lá a para cá sem saber de porra nenhuma. Ao chegar a uma auto estrada na saída do bairro onde cresci um vento mais forte me jogou nos fios de alta tensão. Levei um choque dos diabos e acordei com a lateral do corpo doendo. Levantei, era já madrugada e do meu lado a patroa dormia. Levantei, fumei um cigarro e abri a janela. Tudo parado. As pessoas agora também acertavam as contas com suas pegadas. Tudo me pareceu frio e distante. Vago. A substancia do mundo tinha o gosto de algodão doce sem açúcar. Tudo é muito engraçado, mas eu não rio. E você?

terça-feira, agosto 24, 2010

Preâmbulo

Ela tem o jeito louco de quem
não desperdiça tempo.
Com um movimento intenso
de contrações suaves
ocultas e famintas sob a pele.
Ela tem a dor tamanha, o lábio de delicias
o movimento forte de mulher
madura
que aprendeu a ser em meio a
muitas lutas.
Ela possui o brilho de menina inconseqüente
de coisa ou ser aveludado que se dá
e vai
sem me deixar senão a mim.
Preâmbulo de um texto que não se escreveu
e uma mulher linda inexistente
compondo o quadro lindo
que preenche o meu vazio.


segunda-feira, agosto 23, 2010

Deus, amor e todo o resto...

As palavras são velhos esqueletos que desfilam parecendo vivos mesmo depois que seu espírito se foi. Antes falávamos de Deus. Essa palavra tinha o peso de uma sentença e era dosada com o cuidado da dinamite. Hoje o que é essa palavra? Um hábito vazio que não diz nada. Uma pólvora seca com a a qual os excluídos tentam chamar a atenção para sua queda, uma tentativa fracassada de restituição, um remendo para as vidas que estão partidas. O amor, tomou o lugar que antes Deus ocupava na vida das pessoas. Mas assim como a palavra anterior essa também é muito vaga para encarnar-se de forma decisiva em nossas vidas. Deus, Amor, palavras que todo mundo fala mas cujo sentido cada um estabelece ( ou se deixa estabelecer)como bem entende (ou como entendem por nós). Assim, as carências pessoais (variadas que são) encontram nessas palavras um material elástico o bastante para lhes servir de armadura contra a consciência de sua existência. O amor, doravante será interpretado de acordo com a natureza da carência que lhe dá sentido somado a programação que ensina como satisfazer essa carência.

"Quando não realizamos o ideal imaginário do amor, buscamos explicar a impossibilidade culpando a nós mesmos, aos outros ou ao mundo, mas nunca contestando as regras comportamentais, sentimentais ou cognitivas que interiorizamos quando aprendemos a amar"
Jurandir Feire Costa

A palavra Amor, no entanto, permanece. Mesmo que ocorra a variação do seu significado, pois nesse caso ela é colocada no alto de nossa "hierarquia" de valores de onde ela olha de modo acusador para aqueles que nos negam o que nós precisamos. Em outras palavras: Um mundo sem amor é apenas um mundo que não corresponde ao meu conceito, ao meu ideal. Uma pessoa sem amor é apenas alguém que não se adapta ao que espero dela. E porque é a pessoa que precisa estar errada? não será o meu conceito equivocado? Como perceber isso? Quanto sangue não seria poupado, quanta dor se apenas essa pergunta fosse colocada? Mas isso as mães não ensinam as suas filhas. Deveriam.

domingo, agosto 22, 2010

O fim do futebol

O futebol não vai ser proibido,
nem a morte pode deixar de existir.
As igrejas embora toscas, irão receber seus donativos
e as mulheres continuarão exigindo
a canonização do afeto.
Tudo continuará...
o vinho do meu dia arrebentando
os odres velhos de meus contemporâneos,
a revolta opaca do batalhão de ressentidos,
os gemidos,
dos invisíveis que não participam
de nossa aprovação.
Não, o futebol não vai ser proibido,
e a morte não vai ser abolida
dois pontos extremos entre os quais
vocês oscilam
caravana dos defuntos sem o mal-me-quer
do agora.

terça-feira, agosto 10, 2010

Distância e sentido

Amo os teus olhos diluídos

Em um mar vermelho

onde deságuam enxames.

Teus gestos de vestal sem templo ou castidade

Sua pouca inclinação para o sagrado

e sério.

Amo tua mania de inquietações, teu hábito de entrega

Furiosa,

Os segredos gritantes do teu medo

Onde sacio a minha fome de igualdades.

Dessa maneira eu permaneço em mim quando me procuras

Me esquivando com verdades e me oferecendo em silêncios

Onde somos dois irmãos malditos

Permanecidos na lembrança de tardes de partilha

Ocultos na vestimenta dos segredos improváveis

Porque deveria haver sentido nesse mundo,

Porque esse mundo deveria fazer algum sentido.

segunda-feira, agosto 09, 2010

Alegro ma...

Procuro por um Sutra que cale meus tombos

Uma estrutura mais branda,

E a remissão do meu tédio.

Procuro por uma sonata de luz, um breve intervalo

Sutil

Onde possa sentar-me comigo e aceitar essa rigidez

Que me cerca.

Procuro um Alegro ma non Tropo

Um beijo sem memórias e um gesto sem condenações

Sem a tensão dos seus braços, sem a distração do meu jeito

Sem o tudo que tem sido nós dois.

Procuro, já não cabe fingir, o mesmo de sempre

O ponto cego para sentir-me estável

Olhar na face do medo

E beber plenamente

a minha taça de tempo.

sexta-feira, julho 23, 2010

Soneto (mal feito) para o amigo

Depois de tanta trincheira, tanto corte,


porrada na carcaça carcumida


Olho para o perfil sereno e forte


de quem, como eu, não teme a vida.


Sinalizo o verme camuflado, esperando


Sem brio, vertendo seu veneno antigo


com o rebanho dos invejosos rastejando.

Comungamos do combate contra esse inimigo

Com ilhas imensas de solidão a cada caçhaçada

Para dividirmos as conquistas e o cinismo

Como se a vida mais não fosse que uma luta armada

Sigo contigo, embora isolado, bem sabemos

Que o auge da amizade é esse isomorfismo

Da consciência de que somos homens e morremos

terça-feira, julho 20, 2010

Algumas vezes você tem um amor

E outras vezes é o mar quem governa

Você tem trabalho, medo da morte, cinismo

E ainda colocam em seus ombros

A obrigação de ser reto.

Você tem uma mal que não cura,

Não sabe seguir de mãos dadas

Sustenta uma guerra perdida

E coloca nos socos o desespero

Da vida.

Você vê a face negada, a traço calcado

E as pessoas utilizando lindas palavras

Para espremer seu pescoço.

Você as vezes para, limpa o suor

Entorna alguns copos

E dorme,

Mas o pretendido repouso não chega.

sexta-feira, julho 16, 2010

Angeli


Quem são eles (e elas)

Por não ter conseguido
Ou pela vitória ter escapado entre os dedos
Por causa de um pai escroto, ausente ou doente
Por uma mãe muito boa, muito santa e frustrada
Pelas fases da vida em que se cai no buraco
Pelos amigos que deram inveja
Pelas amigas que são mais bonitas
Pelos gritos calados, esquartejados, enterrados
Pelos jogos de dados que não contemplaram
O projeto.
Por tudo isso, por tudo aquilo, por tudo o mais
Carregam a foice do gesto,
Afiam a garra do olhar
E nunca deixam de demonstrar
O que são.
Bombas de ódio esperando para explodir.

quinta-feira, julho 01, 2010

Nivele as desigualdades

Se você tem um lugar
Segure-o
Se você nasceu entre nuvens e trevos
mantenha-se.
Um dia você saberá que existem poucos alicerces
E muita gente precisando de escoras,
Muitos detritos sendo arrastados e poucas formas de
Fugir do esgoto.
Quase ninguém pode fugir,
Quase ninguém pode mover-se
Quase ninguém para angustiar-se consigo
E se você pode então faça,
Segure com fome e com força
Esse pedaço de acaso que lhe dá
O sorriso completo.
Corra,
Corra,
Corra,
Sorria e lance um beijo ao luar
Beba essa dose de sobriedade e bom senso
Mastigue essa fatia de doce prudência
Que te faz dormir sem demônios.
Lembre das datas certas,
Não leve ofensa pra casa
Revide a porrada e mande foder-se
Todo mundo que não encaixa
Em seu conceito
Mas tenha cautela, oh sim, tenha cautela
Quando for comentar
pessoas
ssim Como eu.

segunda-feira, junho 28, 2010

Uma piada

“És muito cínico” Ela me disse
Depois comentou a minha vasta erudição
E aquilo me soou como uma desculpa.
No outro dia foi a minha distração,
Meu modo confuso e livre de amar
Sazonalmente.
“Não serves para um marido”
É o que ela quase disse,
mas a palavra tropeçou
Em uma outra imagem mais exigente
e refinada.
“És muito cínico”
ISSO É ALGUMA MERDA DE PIADA?
Coloque a língua em um formigueiro
insone
e depois me diga algo belo sobre a natureza
dos insetos.

terça-feira, junho 15, 2010

Angustia de influência

Não importa o que você faça,
as pessoas nunca acharão que foi o bastante.
Nós sabemos disso, e ainda sim tentamos fazer de uma forma melhor
De um modo menos cruel
De um jeito mais honesto.
Que certamente será ignorado e pouco.
Não importa a força,
O empenho,
A doçura
Com a qual acalentas o mais belo
Broto de sonho
Ou nome de deusa.
No final serás apenas uma pedra
Encaixada em um caminho de sombra.

domingo, junho 13, 2010

Apresentação de si

Só quem viveu a regra das ruas com a asa manchada
Conhece o peso
De noites sem fim.
Sem tempo para perder com detalhes
Sem energia bastante para se ocupar com a fama
A fome, a fúria e o olhar do carrasco
A velhice e a putrefação dos destroços
No seu encalço
Constante.
É nesse instante que você percebe
Que não importa o que faça
Uma marca invisível lhe foi pregada na testa.
E no fim tudo lhe parecerá inútil
E tolo.
A tristeza vai estar lá
A solidão vai estar lá
A vergonha e a ferrugem de seu
Brio vão estar lá
Como golpes,
A cada segundo exausto de ti
A cada aflição sem nome e calada.

sábado, junho 05, 2010

Cabala cínica

Para dar um corpo a sombras e um nome aos meus riscos
Elaboro as estratégias que sancionarão os meus gritos de loucura.
As raízes marginais, as origens perturbadas, o futuro fétido
E a morte solitária;
Signos arcanos escritos com a lama fedorenta de um bairro detestável
Gotas de chuva inexistente tombam nas carcaças oriundas dessa profunda
Artilharia, dessa foice de sorrisos, dessa exigência de afagos,
Talvez eu te mande um cartão das catacumbas
Adornado com esperança para que chegues atormentada
Aonde eu cheguei.
Aonde eu cheguei, aonde chegamos, onde faremos o que for preciso
Na compreensão intensa de que não nos devemos nada
Senão a cortesia da não exigência,
Aqui seremos em nós mesmos passageiros prestativos
Indiferentes e dispostos a rasgar o tempo
Com sorrisos sem sarcasmo
Com meditações cruéis sobre o coração
De Deus.

segunda-feira, maio 24, 2010

Jorge Maluco

Era mais um dia duro de trabalho e os rapazes estavam todos tão esgotados do batente que nem se ouvia as piadas ofensivas sobre esposas e irmãs. Os caminhões faziam fila em frente ao açougue e enquanto os carregadores traziam os fardos os açougueiros trabalhavam rápido com as facas. As postas de carne iam caindo no chão e eu as pegava, fazia uma ultima limpeza e pendurava nos ganchos do frigorífico. Estávamos todo o tempo inteiramente cobertos de sangue. Era uma situação tão comum que nem nos dávamos conta de diferença entre o sangue do gado abatido e nosso próprio suor. Os dois misturavam-se e secavam em nossos corpos e se repetia-se o processo mais umas duas ou três vezes antes de terminar o expediente. Uma vez o sujeito da serra de ossos acertou o próprio dedo com a lâmina e foi levado as pressas para urgência com um pedaço do indicador preso apenas por uma inútil membrana. O salário era também muito pequeno. Mal dava para a coisas mais básicas. Mas não havia nada de melhor no horizonte. E tinha a honra de ganhar o próprio dinheiro, mesmo sendo tão pouco. Na saída do batente os rapazes as vezes derrubavam umas cervas no Bar do Mário. O lugar cheirava a álcool e derrota. As duas coisas estavam sempre rondando as portas de madeira do lugar. Mario era um negro magro e bem alto, de olhos saltados e com o pescoço coberto de patuás, correntes e contas. Ao lado as garrafas com diversos de tipos de infusão ele guardava imagens de santos e orixás. Não era de falar muito. Quem não o conhecia fava com medo só de olhar em seus imensos amarelados olhos. Mas era um bom sujeito, eu acho.
Havia um mendigo que volta e meia sempre rondava o bar do Mario. As pessoas o chamavam de Jorge Maluco, mas ninguém sabia ao certo se esse era mesmo seu nome. Jorge não conversava com ninguém. Sabia falar corretamente, as vezes passava cantando, mas se alguém puxasse papo ele simplesmente ficava olhando para o chão e não dizia nada. Dirigia-se às pessoas apenas para pedir; às vezes pedia um copo de café, as vezes um trocado para o pão, as vezes uma calça velha e etc. Jorge era sobretudo um mendigo anti social. Mario, por outro lado, era um sujeito bem seco e pão duro. “Sou igual a Mandacaru”- Ele costumava dizer a quem lhe devia dinheiro “não dou encosto nem refresco para ninguém.” Todavia o Mario possuía um vínculo silencioso com o Jorge. Era o único mendigo que recebia alguma coisa naquele bar. Todos os dias, às 16:00 hrs precisamente Jorge maluco parava na porta do bar do Mario que prontamente saia com um saco de pão e uma garrafa de café e lhe entregava em silêncio. Jorge tampouco mexia os lábios para agradecer. Como lhe era comum, pegava o donativo e ia-se embora em passo curto e rápido balbuciando coisas que se alguém entendia era apenas ele mesmo.
Um dia, durante a cerveja pós-expediente comentei com o Groto o açougueiro, um branco de Irecê; grande sujeito, bom de trabalho e de copo.
-Por quê o Mário todo dia, no mesmo horário, dá ao Jorge maluco o mesmo saco de pão?
-Eu soube de uma história, mas não sei se é verdadeira – Respondeu o Groto e continuou- Mas o Mário não gosta de ouvir as pessoas falando disso. Fica brabo como cavalo xucro.
Groto entornou mais um copo, olhou para os lados para se certificar de que o Mário não estava por perto e continuou:
-Há algumas décadas atrás o Mário também foi açougueiro. Dizem que era dos melhores. Tão bom que o dono do matadouro o promoveu a gerente. Mas sabe como é, depois de um tempo trabalhando nessa coisa a gente vai ficando um bocado insensível e duro- Parou, deu outra golada e uma trago no cigarro barato. – Bom, como gerente o Mário tratava todo mundo como tratava a carne que destrinchava. Era direto, cortante e sem compaixão. O Jorge nessa época era um auxiliar de carne como você Juan Leon.
-Mesmo?- Interrompi assustado.
-Exatamente, e também era dos bons. Mas o filho único que ele tinha caiu doente, uma doença séria sabe? E naquela época se ganhava ainda menos que hoje em dia. O Jorge faltou ao trabalho alguns dias, correndo para cima e para baixo com a patroa e o filho a procura de um medico, mas o menino continuava cada vez pior. Quando apareceu no açougue para dar satisfação do período ausente o Mário foi cruel. Mandou o pobre infeliz voltar imediatamente para o batente.
- Caralho. Que escroto!
-Pois é. Mas o Jorge se recusou. Aí o Mario disse que se ele não voltasse ao batente não recebia nada. Sem dinheiro, como ele ia comprar comida e remédios para o menino doente? O Jorge desde aquela época era sozinho no mundo. A mulher dele também. Nem parentes, nem amigos...sozinhos. Sem escolha Jorge voltou ao trabalho. No meio do expediente recebeu a noticia de que o filho tinha morrido chamando seu nome. Largou a faca e o avental e saiu alucinado correndo. Ao chegar em casa viu um tumulto em frente ao barraco em que morava. Sua mulher estava estendida ao lado da cama do garoto com os pulsos cortados.
-É, qualquer um ficaria maluco com uma coisa dessas.
-Pois então. Desde esse dia Jorge não dirige uma palavra a ninguém, exceto para pedir uma coisa ou outra. Por remorso o Mario lhe dá essa esmola todo dia. Também passou a se interessar por essas coisas de santo, espiritismo e etc.
Quando terminou de contar a história percebi que o Groto balançou a cabeça e suspirou fundo. Uma coisa triste mesmo. Também era triste para os bois que a gente sangrava todo dia. Mario era duro, escroto também, mas estava apenas fazendo serviço dele. Depois de se estar a tanto tempo procurando um jeito de passar pela trincheira sem sangrar a gente desiste. De uma forma ou de outra alguma coisa vai se partir. As vezes de forma visivelmente cruel, como aconteceu ao Jorge, as vezes de forma silenciosa e lenta. Terminamos a cerveja e fomos embora. No dia seguinte haveria mais sangue em nossas mãos.

sexta-feira, maio 14, 2010

Batalha

Nunca foi fácil arranjar um bom bar para beber e papear em Salvador. Em todo lugar onde se vende cerveja nessa maldita cidade se toca musica de péssima qualidade e no último volume. É pior ainda no finais de semana. Não existem muitas opções de vida social por aqui para quem não aprecia essa coisa toda de estrebuchar e repetir refrões sem sentido tentando acentuar a impressão da virilidade que a repressão sexual CASTROU E ESMAGOU. Sacou o Reich na jogada né? É por aí mesmo. Bom, por tudo isso quase sempre acabo ficando mesmo em casa. Só a carência absoluta de um bom pedaço de fêmea justificaria minha incursão na vida social baiana. Nem mesmo a suposta cena “underground”, quase inexistente por aqui, vale a pena. De fato há apenas um lugar, um esquecido barzinho e pizzaria em um canto esquecido de brotas, gerenciado por um ex-soul man da velha guarda, onde eu costumo me juntar ao Batalha para tecer nosso planos de revide. Quando rola som ali é sempre muito baixo. Umas coisas que nos fazem reviver dias que nunca aconteceram. Billie Holiday, Cassiano, Armstrong, Tim, Zé ( O ramalho, o antigo) Roberto (Carlos, o Beem antigo) e por aí. Dia desses, depois de um largo período em que andei encasquetado dentro da minha concha nos encontramos Lá novamente.
-E aí Leon.
-E aí Batalha.
-Como vão as coisas?
-Pergunte ao Pó
-Porra, essa é velha, “Pulp”
-Isso aí, Dante e depois Fante.
-E no Mais.
-Um da Escola casou.
-Porra, também? É, todo homem precisa de um seguro para os dias difíceis.
-Mas para esse cara os dias difíceis já chegaram- eu disse.
-Como assim Man?
-O Sujeito saiu do emprego.
Batalha ficou assustado. Todos nós sabemos o que significa ficar desempregado no Brasil. Seus olhos saltaram.
-Caralho! Fudeu! Como ele ta se virando?
- A patroa dele arranjou emprego de tempo integral, mas isso não é o pior.
-Como assim Leon, você está estranho, cheio de rodeios, que porra aconteceu finalmente?
Era difícil para mim contar o lance todo assim na lata. Da Escola era um dos nossos. Um filho do subúrbio como nós que tinha colhões o bastante para não se render ao tráfico, a igreja, ao partido nem ao pagode. Ele TINHA sim colhões, mas os perdeu, de forma trágica.
-Bom, sabe aqueles animais que mudam de sexo quando as fêmeas desaparecem?- Falei, dei uma golada, uma tragada e continuei- Aconteceu algo parecido com o da Escola.
-Como assim Man???
Bom, primeiro ele ficou desempregado, como eu contei. Em seguida a mulher dele arranjou emprego, Também citei isso.
-È, mas e aí?
-No início o problema era só uma brochada uma vez ou outra. Normal, quem nunca brochou não aprendeu o valor um serviço bem feito. Depois o Da Escola começou a cuidar das coisas de casa enquanto a patroa trabalhava, tipo lavar prato, roupa, fazer comida e etc. Parou de tomar uma com a gente, você deve ter percebido.
-É, percebi sim.
-Foi nesse ponto que as coisas começaram a ficar estranhas, tipo aquele seriado.
-Arquivo X- Batalha completou.
-Isso aí. O Da Escola começou manifestar insensibilidade na ferramenta. Não sentia nadinha ali. A coisa começou a ficar roxa e fedorenta até que simplesmente despencou no chão.
-CARALHO!
-Isso, caiu podre e sem vida. E o pior, no buraco que ficou começou a se formar uma xana.
-Porra! Peeeeera aí Leon, você ta de sacanagem! Impossível.
-Um momento, não terminou. A vagina da mulher dele também começou a mudar. O clitóris cresceu e se transformou em um pênis. Os peitos atrofiaram. Agora ela é que segura o controle da televisão. Não preciso dizer que ele não vem mais beber com a gente. Tem novela sábado à noite e domingo é o dia que ele tira para ficar com ela.
Terminei meu relato e pedi outra rodada. O Batalha estava desconsolado. Sabíamos que em algum momento uma coisa daquelas iria acabar acontecendo com um de nós. De um momento para o outro não precisavamos dizer mais nada. Ficamos ali apenas bebericando e fumando. Os caminhos estavam se estreitando cada vez mais. Não dava para correr na direção contrária, lá também já tinham colocado barreiras. Eu não sabia a senha. Um pássaro congelando no inverno não tem pena de si mesmo. O velho Hemingway tinha razão. Nada de Deus, nada de família, nada de grandes discursos no funeral, sem obra para a posteridade, sem grupinho de amigos para fazer barreira contra a verdade de nossa decadência, infinito gozo sincero que se perde nessa súplica enviada para coisa nenhuma, para o nada, enfim estamos chegando ao cais, no caos nós já nascemos. Rachamos a conta e nos despedimos. Cada um para as reclamações e lamentos de suas recíprocas patroas. O Batalha e eu. Ainda inteiros, ainda inteiros.

domingo, maio 09, 2010

Consumatum est (menino partido)

Aquele menino quebrado
Ainda sabia voar
com asas de seda dourada
na imensidão de um céu impossível.
Mesmo forrado de desgostos
vendo a própria mãe
Sem orgulho atormentada a chorar.
Ele ainda acreditava nas coisas, ainda olhava brilhantes
Estrelas e rabiscava versos horríveis
Que lhe pareciam tão lindos e puros
Quanto a polpa celeste
De sua alma partida.
Aquele menino poderia aprender a cantar
Poderia salvar muitas vidas
E construiria para vocês uma pousada segura
Após a tempestade dos dias.
Aquele menino resistiu de tantas formas
Guardou em caixas de papelão pequenos pedaços
De coisas sutis que se desfaziam a cada NÃO
A cada dia cruzando seus olhares
Tentando contornar os portantos
Até que desistiu
Ele abandonou-se e desapareceu
Esperando tê-los deixado orgulhosos
Com o vosso trabalho bem feito.

Apreciação do açougue

Acabei de chegar. Coloquei as chaves e a carteira sobre a mesa, joguei uma água na carcaça, abri uma garrafa de vinho e sentei para escrever. Tinha ido até o subúrbio levar uma frango para minha mãe e ver minha filha na casa de minha ex-mulher. Um tormento, a começar pelo transporte lotado com estorvos gritando como se estivessem sendo currados. As pessoas me olhavam quando eu passava, como se assombradas com o fato de eu não lhes dar a mínima, ou tentar não lhes dar pelo menos. Muito, muito barulho. Caras marcadas e feias, olhinhos arrogantes a vazios. Segurando suas coisinhas, suas mulherizinhas, celulares, carros e óculos escuros até dentro do ônibus. Estúpidos. Minha mãe estava lá. Com sua música evangélica como sempre. A mesma que era há trinta anos, conforme posso me lembrar. A casa imunda com pratos e roupas sujas amontoadas nos cantos. Fez uma festa quando me viu, ou quando viu o frango e o peixe em posta que eu levava. Claro que ela não precisava levar a vida daquele jeito, mas foi exatamente assim que ela passou a maior parte da vida. Reclamando, lembrando do passado, sem dar nem mesmo meio passo pra frente. Minha irmã mais nova estava lá também. Estirada no sofá. Me pediu dinheiro para beber. Era só o que sabia fazer, além de trepar, é claro. Dei um trocado a ela e fui ver minha filha.
Estava de cara fechada como sempre. Uma criaturinha que já tinha sido tão doce e alegre, tão suave e vivaz quanto um girassol infinito brilhado no horizonte está se tornando cada dia mais cheia de raiva e de azedume, como aquelas carinhas doentes que vejo nas ruas aos milhares.A responsável pela degeneração i me gritou de dentro da casa. Um monstro de varizes, tecido adiposo e rancor amargurado que um dia já se deitou em minha cama, minhas tripas se contorcem só de imaginar. Eu havia presenteado minha filha com uma câmera fotográfica que deu defeito no dia seguinte, apesar de ser nova. Foi motivo o bastante para ela espumar pela boca enquanto gritava, ameaçava e lembrava de coisas enterradas no passado. Uma visão dantesca, irritante, mesquinha. Minha filha estava ali, dia e noite vivendo a sombra daquele monstro venenoso, amando uma víbora que lhe enxertava no coração pestilência, inveja e raiva.
Saí arrasado. Desejando que a raiva daquela criaturinha a fizesse explodir em um milhão de minúsculos pedacinhos. Comprei uma garrafa de vinho no caminho. Já estou no segundo copo. Um centopéia negra se move no canto da sala, eu sou sua janta e ela está cansada de morder apenas minhas extremidades. Não vou cruzar com nenhum Buk nem nenhum Jidu pelo meio do caminho. Não poderei começar de novo, descobri subitamente que minhas raízes estão definitivamente cravadas na lama suja, que não nutre, apenas suga e consome a minha energia. O beija flor pousou na cerca, não encontrou flores sem mercúrio, o muro está cada vez mais alto. Preciso de mais um copo.